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Claudio Szynkier

Até onde entendo a idéia de amadorismo, ela está muito melhor representada pelo seu radical (amar) do que pelos seus significados diretos e mais populares: aqueles que associam amadorismo à referência daquilo que é feito por “quem não sabe”, por quem não possui “proficiência necessária”, tem compromentimento relativo, mas “leva como passatempo”.

Pois bem, e para o nosso próprio bem, foi o cinema moderno que resolveu a posição do amadorismo na arte do mundo. Resolveu porque a idéia de se fazer algo com comprometimento especificamente particular, isento de rigor prescrito, provavelmente já existia, mas quando o crítico e pesquisador André Bazin lançou seus jovens críticos de cinema ao mundo, com a criação da revista Cahiers du Cinéma, na Paris de 1951, tivemos claro, pela primeira vez, em um ambiente de 1- preocupação estética e 2 – potencialidade de alcance de massa sintonizados (o cinema é a arte industrial por excelência, junto com a música pop e os quadrinhos) o princípio de que um AMANTE, sendo ou não um especialista na operação de uma linguagem, pode exercê-la e aplicá-la à sua maneira no mundo. Importante: para sucesso em termos artísticos (jamais um valor que pode ser relativizado), esse AMANTE não poderia suprimir desse exercício: 1- paixão, que nasceria primeiro de um certo fervor analítico 2 – conhecimento, técnico suficiente e conceitual, vasto.

O amadorismo lá nos anos 50 e 60 se tornou assim um novo idioma, que reescreveu, em seu estado de definição (resolução, por iniciativa dos Cahiers), a própria tradução da modernidade: faz quem ama (sendo inclusive quem ama, quem entendeu e, por amor, foi à cata da descoberta em muitos casos autônoma de fundamentos, técnicos mas principalmente os conceituais; e não na escola, não do jeito que os livros prescreveram).

Isso pôde se estabelecer como verdade concreta porque esses críticos da primeira geração da revista foram promovidos: de “meros” críticos-amantes, tornaram-se cineastas “amadores” de fato, que definiram a contemporaneidade do cinema, que por vocação e coincidência é a arte que retrata a nitidez do momento, a nitidez da evolução, das mudanças humanas, no caso, do século XX, e toda a confluência de idéias e transformações que o tempo vai acumulando e chocando.

Depois de lapidar e fermentar durante quase 10 anos um pensamento de cinema e mundo tão forte quanto excitado pela contemporaneidade (com suas imagens, seus vazios e problemas de geração, a do pós-guerra no caso), esses jovens críticos reinventaram o próprio cinema. Seu culto a cineastas brilhantes, porém até então tratados com indiferença e relegados ao limbo de sub-análises (exemplos: Jerry Lewis, Alfred Hitchcock), aliado à atividade escrita cotidiana foi gradualmente inspirando e dando origem a filmes. Filmes de amantes do cinema sobretudo, que colocavam em prática novas abordagens técnicas intuitivas e novas maneiras de olhar, de exercer curiosidade, a senha primordial do cinema. “Acossado”, de Godard, “Os Primos”, de Chabrol, “Os Incompreendidos”, de Truffaut, e “A Carreira de Suzanne”, de Rohmer, feitos entre 1958 e 1963, foram passos iniciais e prenúncios de obras decisivas para a arte, e são claramente frutos da rotina crítica dentro da redação dos Cahiers (“cadernos”, em português) e nas salas de cinema de Paris, visitadas religiosamente durante aqueles primeiros anos da revista orientada por Bazin.

O surgimento, na música, de bandas como o Velvet Underground, Can, Hatfield and the North, Zappa e mesmo os Beatles ao longo dos anos 60 e 70, mais tarde do Sonic Youth nos anos 80, do Pavement nos anos 90 e do Animal Collective nos anos 2000, artistas que em seu experimentalismo de ouvintes e amantes de música, mais do que corrigir, desenharam novos cursos para a sonoridade popular, prova e amplia a perspectiva histórica dessa ruptura – que não é nada mais que a ruptura com o academicismo e, em outro lado, com a noção de amadorismo como coisa “vulgar”, supostamente (não)dominada por toscos ou por pessoas que “passam o tempo com aquele talento meio que insignificante”.

Quem, a partir dos anos 60, não fez uma arte de postura pessoal na música, uma arte musical crítica no sentido mais puro dos primórdios do Cahiers – amar e estudar a fundo o objeto como pré-requisito para realizá-lo à sua maneira -, certamente não entrou para a história da arte, talvez na do mercado: como prova o punk rock com exceção do Clash, do Ramones, do Buzzcocks.

Em se tratando de amar para fazer, realizar, a web “apenas”, mais para o lado da música (que é operacionalmente mais barata e mais fácil de conceber e fazer circular), potencializou a possibilidade de troca entre todos – inclusas trocas entre indivíduos que estão pensando e fazendo música com essa paixão crítica hoje -, e abriu o caminho para que cada artista fosse, na verdade, sua própria plataforma de mercado: seu próprio selo de discos, seu próprio assessor/ agente num primeiro momento, seu próprio consultor visual, etc.

A web, por sua vocação pública e prática, pôde portanto contaminar de amadorismo toda a cadeia de realização artística, com muito efeito a de realização musical, aqui não mais e apenas um amadorismo do ato criativo. Se fulano pode baixar o último disco do Beach House, amá-lo, depois articular sua própria arte, e depois também disponibilizá-la, divulgá-la, negociá-la e, dentro da web, explorar as estratégias adequadas para que ela se prolifere, ele se tornou um amador-profissional moderno, não apenas porque pratica música de exceção (a arte de exceção é a arte crítica, a arte do amor, do amador), mas porque recria o sistema mercadológico de acordo com suas vontades, suas necessidades.

Esse “novo amadorismo” de mercado pôde servir para todos, não apenas para quem vê e vive música como arte de exceção logicamente, e sem dúvida um grande ponto de interrogação para as próximas horas é o que encerra a pergunta de como o “lado negro da força”, a indústria tradicional, grande, geralmente um inimigo não-constrangido da exceção e do “amadorismo”, vai se transmutar e agregar esse elemento para si, como vai apropriar-se para sobreviver, o que parece ser a ordem do dia.

Transplantando para seus produtos e posturas, cada vez mais, uma capa, uma aparência de espontaneidade, de “pureza underground” amadora, uma aura “cool” de quem faz por amor? Uma coisa, porém, é certa: nesses cinco anos de quase total liberdade “amadora” na web musical, tanto do ponto de vista criativo como do ponto de vista comercial, vai ser difícil regredirmos rumo ao ponto obscuro onde artistas muito talentosos ou mesmo geniais eram afogados pelo mar governado pelo mercado. E esse é um triunfo da idéia de pensamento crítico ativo, turbinado pela tecnologia.

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