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Paulo Rená da Silva Santarém

Há um velho ditado que diz que onde houver pessoas haverá direito. E as novidades que se sucedem, como a Internet Das Coisas (1), só reforçam a percepção de que a Internet estará cada vez mais presente nas vidas das pessoas. Não é difícil ligar os pontos e concluir que um diálogo entre o direito e a Internet é inevitável. Pois desde seu início, lá em 2007 (2), o Marco Civil da Internet (3) foi pensado como uma proposta para que a legislação no Brasil, em vez de um obstáculo, funcione como um estímulo para que esse diálogo ocorra de forma mais proveitosa o possível, tanto para o direito quanto para a Internet.

Em outubro de 2009 a Secretaria de Assuntos Legislativos (4) (SAL) do Ministério da Justiça iniciou o projeto de construção colaborativa de um texto de lei que pudesse permitir ao ordenamento jurídico entender e respeitar o funcionamento da rede, ao mesmo tempo em que permita exigir que quem usa a Internet tenha o devido respeito pela legislação nacional. Desenvolvido em parceria com o Centro de Tecnologia e Sociedade (5) da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (e contando com uma plataforma virtual (6) mantida pelo Ministério da Cultura e a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa), o projeto buscou conhecer a complexidade e a riqueza das demandas que a sociedade brasileira quer ver satisfeitas em tempos de cultura digital. O objetivo era refletir toda essa diversidade social em uma lei ordinária, algo como registrar em partitura os sons orgânicos de uma floresta. Uma tarefa sabidamente complicada, espinhosa e que envolve muitas dificuldades, mas que se devidamente concretizada levaria a um resultado incrível.

Essa abordagem se contrapôs à tendência mundial, então hegemônica, de regular a Internet por meio de restrições, condenações ou proibições de uso. Aqui mesmo no Brasil, as atenções do governo federal estavam voltadas para a criação de uma extensa lei de cibercrimes, que foi tão criticada a ponto de ser conhecida como AI-5 Digital (7). Em vez disso, com o Marco Civil optou-se pela direção oposta, orientada em três eixos: garantir direitos fundamentais para quem usa a rede, estabelecer o limite das responsabilidades dos intermediários e traçar diretrizes para a atuação do Estado. E em vez de um trabalho estritamente técnico, de gabinetes e especialistas, optou-se por um procedimento colaborativo e aberto, no qual qualquer pessoa (física ou jurídica) pudesse participar ativamente. Afinal, o objetivo não apenas criar mais um texto normativo, mas construir uma proposta de forma conjunta, de tal sorte que o resultado fosse fruto de um debate público e franco sobre questões que interferem nos interesses atuais e futuros de toda a sociedade, inclusive das pessoas que não tem condições de sequer acessar à Internet.

Para que esse ousado objetivo pudesse ser alcançado, foi essencial que houvesse uma grande participação durante a fase de elaboração do Marco Civil. A multiplicidade de usos da Internet faz com que seja inviável para qualquer pessoa conceber sozinha a totalidade de proveitos possíveis. Somente um trabalho participativo, efetivamente democrático, poderia dar conta da riqueza da rede e prever linhas básicas para uma legislação sobre ela.

O primeiro passo foi a elaboração de um texto apontando os habituais aspectos jurídicos do uso da Internet: privacidade, intimidade, guarda de logs, liberdade de expressão, acesso anônimo, direito de acesso, filtragem, neutralidade, interoperabilidade, acesso a dados, ampliação da infraestrutura e inclusão digital. Em tom problematizante, esse texto (8) foi publicado no blog oficial do Marco Civil (9) para que internautas o comentassem, expressando suas expectativas sobre como suas liberdades e direitos deveriam ser garantidos por lei.

Durante cerca de 45 dias foram apresentadas mais de 800 contribuições, entre comentários, tweets e emails, com uma média diária próxima a 1.500 visitas. Esse conjunto (10) foi avaliado pela equipe e serviu de base para a elaboração de uma versão preliminar de um anteprojeto de lei (11). No formato tradicional de artigos, parágrafos e incisos, o texto buscou refletir as manifestações dos internautas, conforme os argumentos mais bem apresentados para cada um dos temas.

Então, entre e abril e maio de 2010, seguiu-se uma nova rodada de debate aberto. A força da participação social (12) no projeto cresceu tanto que antes mesmo do fim dessa segunda fase houve uma rápida alteração da proposta original. A dinâmica de remoção de conteúdo proposta teve de ser substituída (13) pela exigência de que somente uma ordem judicial poderia obrigar a retirada, não bastando apenas uma notificação da parte interessada. Foi quando surgiu o apelido de Constituição da Internet (14), pois percebeu-se que o conjunto de internautas passou a figurar como um novo sujeito coletivo de direitos, essa coletividade de cidadãos ligados pelo uso da rede, que em inglês tem sido chamada de netizens (15).

Em agosto de 2011, passado um ano desde o encerramento da segunda fase de debate (16), a Presidência da República encaminhou para o Congresso Nacional o projeto de lei nº 2.126 (17), acompanhado de uma exposição de motivos (18) assinada pelos Ministros da Justiça, do Planejamento, Orçamento e Gestão, da Ciência e Tecnologia e das Comunicações. Segundo o governo federal, era importante que as relações privadas entre usuários e empresas na Internet tivessem um parâmetro comum que permitisse um melhor controle dos abusos, sem prejuízo das boas práticas; que os juízes contassem com um amparo legal para produzir decisões mais adequadas à realidade da Internet, distribuindo responsabilidades e exigindo o cumprimento das normas de forma compatível com a natureza dinâmica da rede; e que a sociedade pudesse cobrar dos seus representantes eleitos que as novas normas e políticas públicas levassem em conta o potencial plural da Internet como ferramenta de desenvolvimento social.

Em março de 2012 foi montada na Câmara dos Deputados uma Comissão Especial (19) para apreciar o projeto. E para debater em mais detalhes o Marco Civil da Internet, os deputados realizaram audiências públicas presenciais (20) em diversas cidades, além da abertura de uma nova discussão pública na plataforma virtual e-Democracia (21). Em seguida, quando parecia que o projeto seria aprovado, teve início uma longa sucessão de versões (22), acompanhada por uma cansativa série de adiamentos na votação (23). No fim do ano, pressionado pela repercussão de um vazamento de fotos íntimas de uma famosa atriz, o Congresso aprovou duas leis de cibercrimes (24) [nº 12.737 (25) e nº 12.735 (26)], mas nada de Marco Civil. Os temas da neutralidade de rede, da liberdade de expressão e da privacidade começaram a se destacar como principais pontos de polêmica, e o impasse emperrou a tramitação.

Somente em meados do ano seguinte haveria um novo impulso de peso: a avalanche de denúncias (27) contra os esquemas de monitoramento eletrônico e vigilância em massa empreendidos pela Agência Nacional de Segurança (28) dos Estados Unidos e os demais países componentes dos chamados 5ive Eyes (29). A revelação de que uma importante empresa pública brasileira (30) e a própria cúpula do governo (31) haviam sido alvo de espionagem pela Internet levou à solicitação de urgência constitucional para a apreciação do Marco Civil. Contado o prazo de 45 dias ainda sem votação, em outubro de 2013 a pauta da Câmara dos Deputados entrou em suspensão até que a “Constituição da Internet” fosse apreciada.

Nesse meio tempo, enquanto os grampos virtuais eram conhecidos em maiores detalhes e o denunciante (32) se tornou conhecido mundialmente, o Brasil ganhou destaque quando, além de cancelar uma visita (33) aos Estados Unidos, fez um discurso na abertura da Assembleia Geral da ONU (34) em favor da defesa intransigente dos direitos humanos também no ambiente digital. Apresentou-se ao mundo a proposta de um Marco Civil global (35) para a Internet, a qual viria a contar com apoio do próprio criador da World Wide Web (36). Aproveitando esse clima, a entidade responsável por gerenciar os nomes de domínios da Internet propôs (37) e nosso país aceitou realizar um Encontro Multissetorial Global Sobre o Futuro da Governança da Internet, ou simplesmente NETmundial (38).

Chega 2014 e no plano interno a tramitação continuou complicada, com mais alterações no texto do projeto de lei, incluindo propostas que, mesmo pontuais, afastavam-se do espírito inicial e ou mesmo contrariavam os principais pilares do Marco Civil. Nos meses anteriores, o esforço de uma costura política de acordos na Câmara dos Deputados, aliado ao poder dos interesses econômicos em reduzir a Internet e um simples mercado de informações, chegou a colocar em risco os objetivos principais do projeto. Redução de privacidade, exigência de centros de dados no Brasil, hipóteses de remoção automática de conteúdo, riscos de censura. Novamente a sociedade se mobilizou (39) e foram organizados novas manifestações online para bradar nenhum direito a menos (40), reativando a importância de o Estado voltar seu olhar para as demandas da população em relação ao uso da rede.

Somente depois de cinco meses de trancamento da pauta da Câmara dos Deputados, tendo sido inclusive refém de uma disputa partidária disputa partidária dentro da própria base aliada (41) do governo federal, em 25 de março de 2014 o Marco Civil da Internet foi votado e aprovado (42). Encaminhado ao Senado como projeto de lei da câmara nº 21/2014 (43), houve novas turbulências. A dinâmica do Congresso Nacional em ano eleitoral somada à Copa do Mundo tornava real a possibilidade de tudo ficar apenas para 2015, o que seria ruim para os interesses do governo federal naquele momento, mas que corresponderia a um golpe muito pior para todo o conjunto de internautas, que continuariam na mesma situação de insegurança em relação a seus direitos, que continuavam a ser ameaçados ou mesmo lesados diariamente. Tanto que a aprovação do Marco Civil foi defendida internacionalmente como um presente para internautas do Brasil e do mundo (44). Afinal de contas, a Internet continuava a ser cada vez mais usada, novos conflitos continuavam surgindo e as divergências sobre o que é certo ou errado se multiplicavam, com pouca probabilidade de serem tomadas soluções econômicas, jurídicas ou mesmo tecnológicas em favor das partes mais fracas ou que respeitassem a lógica aberta, neutra e horizontal dos protocolos da Internet.

Mas graças à pressão de organizações da sociedade civil (45), online e presencialmente nos corredores do Congresso Nacional, o projeto teve sua urgência constitucional observada e, em menos de um mês, no dia 22 de abril, foi aprovado pelos senadores (46), praticamente com o mesmo texto que veio da Câmara (47). Na abertura do NETmundial, com a presença de dezenas de líderes mundiais, o Marco Civil da Internet no Brasil foi sancionado em público (48), com toda a pompa e circunstância, reforçando a promessa de se construir um acordo global nos mesmos moldes, para fomentar a Internet que queremos [ou Web We Want (49), na sigla em inglês que tem as iniciais WWW]. Após sete anos, desde a primeira concepção, foi publicada a Lei nº 12.965 (50) de 23 de abril de 2014.

Finalmente o Brasil pode contar com uma lei singular, não apenas pelo seu teor, mas também pela seu processo de elaboração, iniciado por uma parceria entre uma instituição do Estado e a sociedade civil mesmo antes de tramitar pelo Poder Legislativo. E nada poderia ser mais apropriado que usar as ferramentas disponíveis na Internet para o exercício democrático de elaborar uma lei que garanta direitos de quem usa a própria Internet. O resultado, é necessário pontuar, não é o ideal. Mas o Marco Civil, embora não represente o melhor dos mundos, inegavelmente se trata da melhor lei do mundo para Internet.

Notas:

  1. Leia mais sobre a Internet das Coisas https://pt.wikipedia.org/wiki/Internet_das_Coisas
  2. Leia o artigo http://tecnologia.uol.com.br/ultnot/2007/05/22/ult4213u98.jhtm
  3. Leia mais sobre o Marco Civil https://pt.wikipedia.org/wiki/Marco_Civil_da_Internet
  4. Acesse aqui http://goo.gl/HQrHw5
  5. Acesse aqui Sobre o CTS http://direitorio.fgv.br/cts/sobre
  6. Acesse aqui Cultura Digital: plataforma pública de blogs e conversas http://culturadigital.br/sobre
  7. Acesse aqui sobre o AI-5 digital http://www.cartacapital.com.br/politica/o-ai-5-digital
  8. Acesse aqui sobre a Primeira Fase http://culturadigital.br/marcocivil/consulta
  9. Acesse aqui o blog oficial do Marco Civil http://culturadigital.br/marcocivil
  10. Leia aqui o Relatório – Compilação de comentários apresentados na primeira etapa http://goo.gl/3SUD19
  11. Leia aqui a versão preliminar de um anteprojeto de lei http://culturadigital.br/marcocivil/debate
  12. Leia a Lista de Contribuições Recebidas pelo Marco Civil da Internet http://culturadigital.br/marcocivil/2010/05/31/lista-de-contribuicoes-recebidas-pelo-marco-civil-da-internet
  13. Leia a Nova proposta para a Seção IV teve de ser substituída http://goo.gl/lDK3gH
  14. Leia aqui Ministro da Justiça defende criação de ‘Constituição’ da internet http://goo.gl/YGJbsy
  15. Leia mais sobre Netizen https://en.wikipedia.org
  16. Leia o Relatório da 2ª fase do debate http://goo.gl/5x9Ofu
  17. Leia PL 2126/2011 – Projetos de Lei e Outras Proposições http://goo.gl/tGY8ax
  18. Leia Quais os motivos do governo para propor o Marco Civil? http://goo.gl/tGK8Wn
  19. Leia Comissão Especial http://goo.gl/5Pb67c
  20. LEIA Audiências públicas e Seminários – Cronograma – Andamento do Projeto de Lei http://goo.gl/DAIJDG
  21. Acesse e-Democracia http://edemocracia.camara.gov.br/web/seguranca-da-internet/inicio
  22. Leia sobre Atualização da tabela comparativa das versões do Marco Civil da Internet do Brasil http://goo.gl/7W19ai
  23. Leis sobre série de adiamentos na votação https://pt.wikipedia.org/wiki/Marco_Civil_da_Internet#C.C3.A2mara_dos_Deputados
  24. Leia Lei Carolina Dieckmann e Lei Azeredo entram em vigor hoje; saiba onde denunciar http://goo.gl/moXITO
  25. Leia sobre lei nº 12.737 http://goo.gl/kx1MEh
  26. Leia sobre lei nº 12.735 http://goo.gl/qSUL5W
  27. Leia The NSA files http://goo.gl/ZPOLqm
  28. Leia mais sobre Agência de Segurança Nacional dos EUA https://pt.wikipedia.org/wiki/Ag%C3%AAncia_de_Seguran%C3%A7a_Nacional
  29. Leia sobre Five Eyes https://en.wikipedia.org/wiki/Five_Eyes
  30. Leia – Petrobras foi espionada pelos EUA http://goo.gl/X8IlPL
  31. Leia – Documentos da NSA apontam Dilma Rousseff como alvo de espionagem http://goo.gl/g0Hfua
  32. Leia mais sobre Edward Snowden https://pt.wikipedia.org/wiki/Edward_Snowden
  33. Leia – Dilma adia viagem oficial aos Estados Unidos http://goo.gl/CUCoZS
  34. Leia – Presidenta do Brasil abre 68ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas http://goo.gl/RuL3L4
  35. Leia – Na ONU, Dilma propõe governança global para internet http://blog.planalto.gov.br/na-onu-dilma-propoe-governanca-global-para-internet/
  36. Leia – An online Magna Carta http://goo.gl/QxzsfC
  37. Leia – Governo anuncia cúpula mundial em abril sobre uso da internet http://goo.gl/Duwh5M
  38. Leia – Sobre o NETmundial http://netmundial.br/pt/about
  39. Leia – Carta das Organizações da Sociedade Civil ao Relator do Marco Civil da Internet http://marcocivil.org.br/noticias/cartamc
  40. Leia – Marco Civil da Internet: nenhum direito a menos! http://goo.gl/QhmTwe
  41. Leia – Disputa eleitoral engole votação do Marco Civil da Internet http://goo.gl/R5DC64
  42. Leia – Câmara aprova projeto do marco civil da internet http://goo.gl/Gb19bS
  43. Leia sobre PLC – PROJETO DE LEI DA CÂMARA, Nº 21 de 2014 http://goo.gl/8BtMu5
  44. Leia – Marco Civil: Statement of Support from Sir Tim Berners-Lee http://goo.gl/r0z8sn
  45. Leia – Renan vai definir com líderes calendário de votação do Marco Civil da Internet http://goo.gl/OmuIpF
  46. Leia – Aprovado no Senado, marco civil da internet segue à sanção http://goo.gl/dA9LqV
  47. Leia – Marco Civil da Internet no Brasil: texto aprovado na Câmara dos Deputados http://goo.gl/u76VdH
  48. Leia – Dilma sanciona Marco Civil da Internet http://goo.gl/Aqxwbc
  49. Leia – Web We Want https://webwewant.org
  50. Leia – L12965 – Presidência da República http://goo.gl/Gp6aS3

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