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Jomar Silva

Recebi um e-mail hoje, com um pedido de compra de um cliente, mas não consigo abrir. É um documento de texto, mas quando tento abrir, meu programa me mostra um alerta, dizendo que o documento não pode ser aberto… será que meu cliente está usando uma nova versão da suíte de escritório ? Preciso arrumar uma cópia dela, pois não posso perder este pedido, nem vou passar a humilhação de pedir a ele para me enviar o documento em uma versão anterior da suíte, afinal de contas, pega mal para a minha empresa assumir que nós ainda não estamos usando a versão mais nova da suíte de escritório, afinal de contas, somos ou não somos uma empresa moderna ?

O parágrafo anterior é pura ficção, mas aposto que ele ocorreu em muitas empresas nos últimos anos (ou dias).

A falta de interoperabilidade entre documentos gerados por suítes de escritório foi um enorme pesadelo para todos nós nos últimos anos, tendo nos forçado a adotar uma única suíte como padrão, para evitar assim o retrabalho de conversões de documentos diariamente. Com a Internet, nossa necessidade de trocar documentos aumentou ainda mais, até nos acostumamos a fazer periódicas atualizações em nossas suítes de escritório, muitas vezes acompanhada (de forma forçada) de uma atualização de sistema operacional e de hardware também. Gastamos rios de dinheiro com estas atualizações para na verdade continuarmos tendo a capacidade de ler documentos existentes e trocar documentos com outras pessoas. Será que isso valeu mesmo a pena?

Não tenho dúvida que a empresa produtora da suíte de escritório (e sistema operacional) mais utilizado no mercado mundial adorava esta época, mas será que para nós, usuários, esta onerosa atualização constante trouxe benefícios reais?

Vocês podem me listar pelo menos 20 “inovações” realmente úteis nas suítes de escritório nos últimos 20 anos ? Como usuário destas ferramentas desde os anos 80, confesso que não consigo elaborar uma lista como esta.

Com o surgimento de novos sistemas operacionais e plataformas computacionais, o problema piorou. E agora ? … estou usando um novo sistema operacional e ainda preciso consultar documentos gerados há 20 anos… será que eu perdi as informações que eu tinha ? A informatização não deveria me proteger desta perda, ao invés de acelera-la ? Como já diziam as bruxas de Wicca, “O diabo mora nos detalhes…” (ou nas três letrinhas que colocamos depois do “.” no nome dos arquivos).

Não é a primeira vez na humanidade que passamos por isso, mas espero que seja uma das últimas. A civilização egípcia documentou grande parte da sua história e da sua cultura utilizando uma forma muito particular de escrita: Os hieróglifos, e durante 1500 anos o significado daqueles desenhos era mais um grande mistério.

Mesmo já conhecendo isto, fizemos o mesmo quando começamos a automatizar escritórios através de ferramentas de software, utilizando um código secreto para o armazenamento das informações, criando verdadeiramente hieróglifos digitais.

Cada empresa que produzia uma ferramenta de escritório criava seu próprio hieróglifo, para evitar que os usuários pudessem trocar de fornecedor com tanta facilidade. Em 1999, uma empresa alemã iniciou o desenvolvimento de um formato de documentos baseado em XML. Em 2000, este desenvolvimento ganhou a Internet e um aumento significativo no número de seus desenvolvedores, e á partir daí, o formato passou a ser desenvolvido de forma colaborativa. Este desenvolvimento foi transferido para dentro de um consórcio internacional desenvolve padrões abertos (OASIS) e depois disso, diversas empresas e organizações do mundo todo passaram a colaborar com a evolução do padrão. Nascia o OpenDocument Format (ODF), um formato aberto de documentos editáveis, tipicamente textos, planilhas, apresentações e gráficos.

O ODF é um padrão aberto, pois seu desenvolvimento é transparente e aberto a qualquer interessado, sua especificação está disponível na Internet, pode ser implementada sem pagamento de royalties e não existe nenhuma limitação á sua reutilização. Existem ainda implementações em Software Livre dele, e isso reduz ainda mais a curva de aprendizado de quem quer desenvolver novos aplicativos com suporte ao padrão e acredite, qualquer brasileiro tem hoje plenas condições de desenvolver uma grande e inovadora ferramenta de software para a edição e manipulação de documentos eletrônicos. Basta ter inspiração e transpiração necessárias, pois o conhecimento técnico não está mais trancado em um cofre a sete chaves.

Em 2006, o padrão ODF foi aprovado por unanimidade na ISO, se tornando, a norma ISO/IEC 26.300.  Em 2008 ele foi aprovado como uma norma brasileira, a norma NBR ISO/IEC 26.300:2008. Em 2011, a versão 1.2 do padrão ODF foi lançada pelo consórcio que o desenvolve, trazendo importantes inovações como suporte á web semântica e assinaturas digitais compatíveis com as normas brasileiras de assinaturas digitais.

Atualmente o ODF é suportado por diversas aplicações, que vão desde suítes de escritório completas (livres como  OpenOffice, LibreOffice e KOffice ou gratuitas, desenvolvidas e suportadas por grandes empresas como o Symphony da IBM), aplicações para edição e visualização de documentos específicos (como AbiWord e Gnumeric) e ainda por portais que permitem a edição documentos (como Google Docs). Existem ainda suporte a ODF implementado em diversas linguagens de programação, grande parte em Software Livre.

Participam atualmente do desenvolvimento do padrão ODF dentro do OASIS ODF TC inúmeras empresas e organizações, como Oracle, Novell, IBM, Microsoft, Adobe e Boeing (sim, aquela que fabrica aviões… já imaginaram se os documentos que geraram um avião durarem menos tempo do que o avião voa ?). Eu sou membro deste comitê e por enquanto, o único Latino Americano por lá.

Dada a sua real interoperabilidade, e sua robustez para o armazenamento de documentos para o longo prazo, o ODF está sendo cada vez mais adotado como padrão para os documentos gerados por governos e empresas no mundo todo.

Faça parte desta multidão também, resgate seus hieróglifos digitais enquanto ainda dá tempo. Seja livre e dê esta liberdade aos outros. Seus filhos e netos certamente vão te agradecer por isso!

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