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Sérgio Amadeu

Na Wikipedia de língua inglesa, quando buscamos o termo “Piracy” (pirataria) encontramos um verbete que se inicia com o seguinte aviso: “Este artigo é sobre a pirataria marítima.” A “pirataria” de músicas, softwares, textos, idéias é trabalhada no artigo copyright infringement, que foi vinculado ao verbete, em português, denominado “pirataria moderna”.

É uma péssima metáfora chamar uma suposta ou real violação do copyright de pirataria. Uma música, um algoritmo, um conjunto de rotinas integradas em um software não possuem existência física, material. Os bens intangíveis e imateriais não conhecem a escassez, nem o desgaste. Por isso, uma música pode ser reproduzida infinitamente sem nenhum prejuízo para a sua existência. Um software, no mundo digital, pode ser copiado sem nenhuma alteração para o seu original. A quantidade de cópias não traz nenhuma implicação para sua fonte, por isso, no cenário digital a proposta da originalidade perde força.

O custo marginal ou adicional de reprodução de um bem imaterial, seja uma música, um vídeo ou um software, é igual a zero, ou seja, o que custa é o suporte da reprodução, o que se pode calcular é o tempo para se processar a cópia. Assim, o contexto dos bens materiais é completamente diferente do que encontramos na economia das idéias. Comparar o roubo de um celular ou de uma carro à cópia de uma música é um absurdo. Não existe download de carros. Quando se furta uma bolsa, a vítima fica privada de seu uso. Todos os bens materiais, tangíveis, possuem o que os economistas denominam de rivalidade no uso. Entretanto, o bem imaterial não tem uso rival. Podemos ouvir a mesma música digital simultaneamente que milhões de pessoas.

Por isso, a metáfora da pirataria é apenas funcional aos interesses das indústrias de copyright. Copiar sem autorização não é a mesma coisa que roubar, não é uma ação comparável àquelas praticadas pelos piratas e seus navios. Os piratas pilhavam as embarcações, não faziam downloads, nem cópias de barras de ouro. Um jovem não dilapida uma gravadora, apenas copia. O jurista Lawrence Lessig, no livro Free Culture demonstrou que a indústria fonográfica faz uma conta equivocada e exagerada dos seus prejuízos. Nem todo mundo que “baixa” uma música iria comprá-la.

Na verdade, liberar músicas na rede é a melhor forma de divulgar o trabalho artístico e conseguir fãs. Bnegão e Radiohead são bons exemplos de como a cópia na rede pode beneficiar os artístas.

Interessante notar que, no caso do software, a chamada “pirataria” foi uma das grandes responsáveis pela constituição e manutenção do antigo monopólio do sistema operacional proprietário e de seus aplicativos. Ou seja, a “pirataria” pode estar beneficiando o Windows. Por exemplo, o modelo de negócios do Office, suite de escritório proprietária, é centrado na cobrança de licenças das pessoas jurídicas, das empresas. Como o custo da licença chega a ser igual ao preço do computador, as pessoas acabam instalando cópias não-autorizadas nas máquinas de suas casas. Esse fato acaba contribuindo para a formação de uma gigantesca massa de usuários adaptados ao Office. Isso fortalece o seu uso nas empresas e acaba dificultando a migração para o modelo do software livre. Nesse caso, a metáfora mais adequada é a dos corsários. Corsário era um pirata a serviço do poder. No caso, temos a cópia não-legal de softwares a serviço da manutenção do monopólio de software.

O termo pirataria traz a imagem de criminosos sanguinários e por isso tem sido usado. A indústria de intermediação cultural, afetada pela expansão das redes digitais, tenta com o uso desta metáfora passar a idéia de que compartilhar música com seu vizinho ou com seu irmão é um crime hediondo. De certo modo, a cibercultura que emergiu a partir das redes digitais, nada mais é do que uma prática recombinante. André Lemos lembou que Willian Gibson disse ser a remixagem a alma da cibercultura. A RIAA e a MPAA consideram a recombinação uma das muitas faces da pirataria. Assim, é possível entender porque querem criminalizar mais de 70% dos usuários da Internet.

Como reação ao uso do termo “pirataria”, como denuncia ao bloqueio do compartilhamento de bens culturais e como crítica as tentativas de privatização do conhecimento, recentemente surgiu na Europa o Pirate Party (Partido Pirata). Imediatamente, a iniciativa se espalhou pelo mundo. Já possui coletivos que defendem a liberdade de cópia em todos os Continentes.

Piratas são eles, nós não estamos a procura do ouro.

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