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A batalha e a verdadeira guerra
Outros exames revelaram que o tumor estava localizado no duodeno, não havia metástase. Mas ainda, havia a possibilidade de o tumor ter alcançado parte do pâncreas. O que seria um agravamento a cirurgia que já era considerada de grande porte. Em uma escala de zero a cinco, sua complexidade estava entre 3,5 e 4. Não quis saber detalhes da cirurgia, sabia que meus médicos sabiam o que estavam fazendo. A cada dia, descobria o que estava por vir. Como uma gincana, cada dia recebia uma pista do que viria a seguir. Dois dias antes da cirurgia, fui informada que poderia comer o que quisesse. Por se tratar de uma quarta feira, eu não pensei duas vezes e pedi por feijoada, meu prato predileto. No dia da cirurgia estava em paz, de certa forma sabia que Deus estava no controle e que não era chegada minha hora, pensava que a obra não parecia estar completa, não fazia sentido morrer em uma sala de cirurgia. Mas ainda que estivesse errada, morrer significaria me encontrar com Jesus e viver em sua Glória. Também não me parecia ser má ideia.
Aguardo ansiosamente e espero que em nada serei envergonhado. Pelo contrário, com toda a determinação de sempre, também agora Cristo será engrandecido em meu corpo, quer pela vida quer pela morte; porque para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro. (Filipenses 1:20-21)
No centro cirúrgico tive oportunidade de conversar com médicos e logo dormi. Ao acordar no Box a meia luz da UTI, eu me dei conta que estava com drenos e sondas. O curativo praticamente ia de ponta a ponta de minha barriga. Tinha em minhas mãos o gatilho para receber morfina. O tumor estava localizado nas porções 3 e 4 do duodeno e não chegou ao pâncreas. Os médicos retiraram quatro centímetros do meu duodeno e reconstruíram a passagem dos alimentos através de um túnel entre o duodeno e o estômago. Resumidamente, de forma simplista, todos os músculos de minha barriga foram cortados, os órgãos foram retirados, quatro centímetros do duodeno foram retirados e suas pontas foram grampeadas. Depois, ele foi esticado e colocado ao lado da parede do estômago e um túnel entre eles foi feito, permitindo assim, que os alimentos seguissem seu fluxo normal. Inicialmente, o planejado era permanecer apenas um dia na UTI. Porém, no dia seguinte a cirurgia, meu organismo reagiu contra todo o sangue recebido e pela primeira vez em quase duas semanas de internação, senti muita dor. A morfina não era suficiente para aliviar a dor e o mal-estar.
Foi uma noite bem longa, em um momento me vi testemunhando para uma das enfermeiras e logo depois, outra crise de dor. Pensei que talvez, não devesse falar do amor de Jesus, pois poderia sofrer alguma retaliação espiritual. Mas e se essa fosse a única oportunidade daquela querida enfermeira, ouvir sobre o amor incondicional de Jesus? Era um preço que estava disposta a pagar. E assim foi durante outros dias de internação. Em outra situação, uma jovem auxiliar de enfermagem desviada dos caminhos do Senhor, pode fazer a oração de arrependimento e de entrega a Jesus.
Mas tu sê sóbrio em tudo, sofre as aflições, faze a obra de um evangelista, cumpre o teu ministério. (2Timóteo 4:5 ARC)
A graça de Deus estava sobre mim, as pessoas sentiam algo diferente naquele Box, o amor de Jesus estava sendo compartilhado. Foram os dias mais difíceis de toda a minha internação, sem alimentação, com dores e todo o desconforto de estar monitorada a todo instante. Não havia momentos totalmente ruins. A hora do banho era algo muito embaraçoso, ficava apenas com as auxiliares de enfermagem. Eu me sentia invadida, sem pudor algum, totalmente fragilizada e dependente daquelas “estranhas” para meus cuidados básicos. Imagine a cena de uma prisioneira que tem suas roupas arrancadas e água fria jogada em seu corpo antes ao entrar em um novo presídio. Era essa a sensação inicial dos banhos. Terrível, mas na realidade não era bem assim. As auxiliares faziam de tudo para que eu me sentisse confortável, eram rápidas e cuidadosas. A situação incômoda era abreviada e quando percebia já estava com lençóis limpos, camisola nova e cabelo lavado e seco. No total, foram seis dias de UTI, dos quais passei sem alimento sólido. Minha alimentação era composta por dois sorvetes de limão diários e um pouco de água. Havia possibilidade das emendas internas se romperem com a alimentação precoce. Mas a cada dia, recebia meu maná. Um pequeno milagre ou não, que me ajudava a compreender que Deus estava no controle e que não estava lá desamparada. O cuidado da equipe hospitalar, o acompanhamento familiar, as visitas de pessoas amadas, as orações e as boas notícias produziam paz e vontade de superar tudo aquilo.
Certa vez, ao ser bombardeado com vários questionamentos sobre como seriam os próximos dias, um dos médicos que me acompanhava respondeu: “ se avexe não !”. Sem entender, perguntei o significado a ele. Avexar significa se apressar, e sem pestanejar, ele começou a cantarolar segurando em minhas mãos o forró A Natureza das Coisas do falecido Accioly Neto:
Se avexe não…
Amanhã pode acontecer tudo
Inclusive nada.
Se avexe não…
A lagarta rasteja
Até o dia em que cria asas.
Se avexe não…
Que a burrinha da felicidade
Nunca se atrasa.
Se avexe não…
Amanhã ela pára
Na porta da tua casa
Se avexe não…
Toda caminhada começa
No primeiro passo
A natureza não tem pressa
Segue seu compasso
Inexoravelmente chega lá…
Se avexe não…
Observe quem vai
Subindo a ladeira
Seja princesa, seja lavadeira…
Pra ir mais alto
Vai ter que suar.
Como os familiares não estão preparados para a guerra
O diagnóstico se confirmou como sendo GIST mesmo, porém, com mais células agressivas que o esperado, o tratamento preventivo foi altamente recomendado pelo conselho formado por diversos especialistas do hospital. As pessoas, por mais que o corpo humano seja perfeito, não são máquinas e passam por diferentes estágios em situações difíceis, ainda mais em tratamentos de doenças graves como o câncer. É importante contar com o apoio de familiares e amigos nesse processo.
Infelizmente, alguns consideram que a fase hospitalar é a pior fase, fazem questão de estar junto nessa fase inicial, mas consideram o problema encerrado na alta. No meu caso, essa não foi a pior fase, pois contava com assistência 24 horas e tinha certa noção do que estava acontecendo e como seria o próximo dia. O período no hospital nada mais é do que uma batalha de uma guerra travada pela vida. É uma batalha cuja vitória é importante, mas não assegura que a guerra será vencida.
Ao sair do hospital, estava curada e a atenção fora drasticamente diminuída. Rapidamente precisei voltar a assuntos financeiros com o hospital e equipe médica, reembolsos de valores pagos e solicitação de aprovação de tratamentos complementares junto à seguradora. Estava curada, mas não me sentia assim. Estava curada, sim. O tumor havia sido retirado por completo, mas havia uma cicatriz de 21 centímetros e dores intensas em minha barriga. Estava curada mesmo, porém me sentia fragilizada, sozinha e com dor. Estava curada, sim, mas ainda se fazia necessário auto aplicar injeções de anticoagulantes por 14 dias. O anticoagulante, com certeza, não era nada perto do que havia passado no hospital, mas gerava um sentimento de angústia. A necessidade de medicação gerava a sensação irreal de não estar curada.
Quando criança, depois de retirar as amígdalas tomei várias injeções de benzetacil. Os farmacêuticos eram golpeados com chutes e pontapés a cada aplicação. Desde então, minha relação com agulhas e injeções nunca foi a das melhores. E agora, estava auto aplicando injeções. Era muito para mim, chegava a chorar antes da aplicação, não por dor, mas por estar passando por aquilo sozinha, me auto aplicando. Há um estudo que diz que as pessoas com companheiros têm uma chance maior de sobrevida em relação a pessoas sozinhas. O estar cercada de pessoas que se importam faz toda a diferença. O meu sofrimento do hospital foi sublimado, não tive tempo para digerir tudo que tinha acontecido. Os dias na UTI foram os piores. Lá minha intimidade, minha integridade haviam sido rompidas. A despeito de todo o cuidado da equipe de médica do hospital, o fato de perder minha privacidade, dos banhos na presença de enfermeiras, das idas ao banheiro assistida e tudo mais fizeram perder parte de minha integridade. Como se algo tivesse sido rompido, como se não se importasse mais com minha aparência ou intimidade.
Acompanhar pacientes durante a internação ou até mesmo em tratamento pós-cirúrgico pode ser um grande temor para muitas pessoas. Algumas transferem suas experiências passadas ou até mesmo recebidas de outras pessoas na situação atual e ao invés de fazer conforto geram desconforto para os pacientes.
Se for acompanhar alguém:
- O faça por amor, não por obrigação ou por falta de opção. Esteja lá para o paciente e não use esse tempo para você colocar em dia sua programação da televisão ou se inteirar nas redes sociais. Esteja lá de corpo e alma, não apenas de corpo.
- Evite conversar com outras pessoas na presença o paciente, mesmo que este esteja dormindo. Nesse momento de incerteza, temores vêm à mente e conversas rotineiras podem se transformar em pesadelos nas mentes dos pacientes. A tendência é acreditar que estão escondendo algo dele.
- Preste atenção às orientações da equipe médica e de enfermagem. Tire suas dúvidas, mas antes deixe o paciente tirar as deles.
- Entenda o momento do paciente, pode ser que ele queira chorar ou ficar em silêncio. Respeite suas emoções. Lembre-se, dos sintomas ao diagnóstico, do tratamento ao pós-cirúrgico, a cada dia, uma enxurrada de emoções poderão vir à tona.
Acompanhantes não precisam ser fortes sempre, mas podem saber a hora e com quem desabafar.
A legitimidade da dor
Uma revolta me acompanhou a primeira vez que ouvi a palavra câncer. Até agora, meus médicos usavam palavras como tumor ou bolinha para descrever o que estava acontecendo dentro do hospital. Foi como se ainda não estivesse vivendo na realidade, como se o peso da doença não tivesse me alcançado durante as três semanas que fiquei no hospital. Justamente quando estava fora do hospital, compreendi que tivera câncer e me dei conta de todos os livramentos que tivera. Uma simples palavra pode carregar um peso enorme, apesar de reconhecer minha deficiência em valorizar as palavras, essa era uma palavra de peso em qualquer idioma ou cultura. Instantaneamente, me vi mais fragilizada e sedenta por atenção e afeto, embora o meu orgulho me impedisse de confessar tal fragilidade.
Rapidamente, descobri uma forma de superar minha dor. Meu primeiro ensaio foi declarar que estava bem, porém um pouco deprimida. Pronto, consegui ouvir que não era de ferro e que isso era normal. Minha dor estava legitimada. Podia sentir dor, sem ser recriminada ou acusada de falta de fé. E assim, foram outras tentativas, acrescentava “pouco deprimida” em minhas conversas, e se surtia o efeito desejado, lançava a palavra “câncer” no meio da conversa. Tinha descoberto o peso da palavra “câncer” em meu discurso. Não importava a situação ou quem era o ouvinte, a reação da pessoa mudava ao ouvir essa “palavrinha mágica”. Por algumas semanas, o aumento da atenção me alimentou. Percebi que estava praticando a autocomiseração. Tinha pena de mim. E confessava minha dificuldade esperando a atenção alheia, para tentar suprir a ânsia de ser amada e cuidada.
Autocomiseração, até quando vale a pena?
Sabia que tinha o direito de sentir dor, de me sentir fragilizada, mas não era a questão. A legitimação de minha dor, rapidamente se transformou em autocomiseração. Era como se algo me preenchesse, sentia-me amada e compreendida, mas não tinha um efeito duradouro, era preciso mais e mais. Quanto mais falava, mais as pessoas sentiam dó, mais me alimentava disso e mais falava da doença. Ao falar mais da doença, ficava mais angustiada e depressiva, e então, falava mais às pessoas para me sentir aliviada, amada. E assim, se formava um ciclo vicioso. A incerteza do amanhã me levava a sentir-me insegura, a insegurança trazia a necessidade de ser amada e para ser amada comentava sobre o câncer. Assim, tinha a atenção das pessoas, fazendo me sentir amada e segura, o que me ajudava a ter vontade de enfrentar a doença e não temer pelo amanhã.
Muitos anos atrás, eu ouvi uma pregação sobre a morte da esposa do profeta Ezequiel. Um alerta de Deus sobre os perigos de buscar respostas em homens ao invés de buscá-las em Deus. O trecho que me marcou foi sobre não se alimentar dos pães dos homens. Nesta ocasião, o preletor explicou que se tratava do alimento que recebemos de homens que não produz vida, mas gera morte espiritual.
veio a mim a palavra do Senhor, dizendo: Filho do homem, eis que, de um golpe tirarei de ti o desejo dos teus olhos, mas não lamentarás, nem chorarás, nem te correrão as lágrimas. Geme em silêncio, não faças luto por mortos; ata o teu turbante, e põe nos pés os teus sapatos, e não cubras os teus lábios, e não comas o pão dos homens. E falei ao povo pela manhã, e à tarde morreu minha mulher; e fiz pela manhã como me foi mandado. (Ezequiel 24:15-18)
Sinal de alerta! Quando me dei conta do que realmente estava acontecendo, percebi que não estava me ajudando, mas na verdade a cada dia piorando um pouco. Lembrei que um abismo chama outro abismo.
Um abismo chama outro abismo, ao ruído das tuas catadupas; todas as tuas ondas e as tuas vagas têm passado sobre mim. (Salmos 42:7)
Para evitar a autocomiseração, a busca pelos pães dos homens, seria necessário alterar meus sentimentos, mas para isso, seria primordial alterar meus pensamentos.
Recentemente, havia aprendido que os pensamentos comandam os sentimentos e estes por sua vez, comandam as atitudes humanas. Às vezes, esse processo é tão rápido que nem se quer é notado. As pessoas não costumam correlacionar suas atitudes aos seus pensamentos.
É possível controlar seus pensamentos e por consequência suas emoções e atitudes. A grande batalha acontece na mente. Controle seus pensamentos e suas atitudes serão outras.
E não sede conformados com este mundo, mas sede transformados pela renovação do vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa, agradável, e perfeita vontade de Deus. (Romanos 12:2)
Expressão muito comum no Nordeste que se refere a levar seu próprio tempo, não ter pressa. Disponível em https://www.dicionarioinformal.com.br/n%E3o+se+avexe/ . Acessado em 8 setembro de 2021
Forró do falecido Accioly Neto. AIRÔ BARROS. A Natureza. ONErpm, 2015. Disponível em https://youtu.be/q_bzexozCcA. Acessado em 12 de setembro de 2021.
GIST - Gastrointestinal Stromal Tumors em tradução livre: Tumores do trato intestinal, ou simplemente Bolinha como era chamado pela equipe médica durante minha internação hospitalar.