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Edmar de Almeida e Ronaldo Bicalho

Introdução

No livro a Energia do Brasil o professor Antonio Dias Leite descreve e analisa a saga brasileira na construção do seu setor energético.

Nessa obra clássica, o professor emérito do Instituto de Economia da UFRJ disseca a maneira como o país soube encontrar a energia necessária para a sustentação do seu desenvolvimento econômico. Desenvolvimento econômico baseado em uma forte industrialização voraz no consumo de energia.

Nessa trajetória, o país construiu um setor energético moderno, vigoroso e sofisticado. Das águas profundas à gestão dos grandes sistemas elétricos continentais, passando pelo enriquecimento de urânio e pelos biocombustíveis, o país conseguiu a energia necessária ao seu crescimento econômico e ao bem estar da sua população.

O novo milênio traz desafios maiores e mais complexos para o setor energético. Mais uma vez é necessário ir em busca da energia do Brasil. Não mais aquela que nos sustentou no século passado; mas aquela que poderá nos sustentar neste século que se inicia.

Inventar esse novo setor energético brasileiro, capaz de enfrentar a nova questão energética colocada pelo novo contexto energético mundial, usando toda a gama de recursos naturais, tecnológicos e institucionais que desenvolvemos, e que ainda podemos desenvolver, para conceber uma nova energia para o Brasil é, em síntese, o grande desafio da política energética nacional.

1. Papel da Energia No Desenvolvimento Nacional

A energia no Brasil deixou de ser uma vantagem comparativa, com seus preços podendo ser comparáveis àqueles apresentados por países sem a nossa generosa dotação de recursos energéticos. A incontrolável elevação dos custos energéticos no país é o sintoma de que a política energética nacional perdeu sua capacidade de elaborar e implementar uma visão estratégica na qual o setor energético representa uma infraestrutura crucial para a promoção do crescimento e desenvolvimento econômico nacional.

O setor energético foi historicamente um dos principais pilares do desenvolvimento econômico e do processo de industrialização brasileiro. Foi o reconhecimento do seu papel crucial nesse desenvolvimento que levou o Estado brasileiro a intervir no setor de energia visando criar as condições para a sua estruturação e crescimento.Basta lembrar que até a década de 1930, o Brasil era um país totalmente dependente da importação de energia moderna (carvão e derivados de petróleo). A única fonte de energia doméstica consumida em larga escala era a lenha nativa.  As poucas ilhas de modernidade do país dependiam do carvão inglês e dos derivados do petróleo importado, principalmente dos Estados Unidos. Nas primeiras décadas do século passado, as principais empresas energéticas internacionais viam o Brasil apenas como um promissor mercado importador do abundante petróleo e carvão produzido e controlado por poucas empresas multinacionais. Por esta razão, não foi possível atrair o investimento privado nacional e estrangeiro na exploração do petróleo e do carvão nacional. Foi a constatação deste fato, e o reconhecimento de que sem energia moderna não era possível o desenvolvimento industrial, que levou o Estado Nacional a criar empresas estatais e um arranjo institucional favorável ao financiamento e crescimento deste setor.

A primeira grande fonte de energia moderna doméstica a ser aproveitada em larga escala foi a energia hidroelétrica. Não seria exagero dizer que foi a capacidade nacional de construir uma dotação institucional, tecnológica e financeira para desenvolver este recurso doméstico abundante que permitiu criar a infraestrutura energética necessária ao nosso processo de industrialização. A hidroeletricidade permitiu a diminuição da nossa desvantagem econômica em função da escassez de petróleo e carvão de qualidade. Os avanços obtidos pela Petrobras na progressiva redução da dependência do petróleo não podem ser colocados em segundo plano. Entretanto, nossa competitividade histórica derivou da nossa grande dotação de recursos hidroelétricos.

Recursos esses explorados inicialmente no marco das empresas estrangeiras – principalmente a Light – e que só após a entrada vigorosa do Estado alcançam uma exploração em termos de intensidade e escala compatível com a crescente demanda associada à industrialização.

Esta infraestrutura energética rendeu bons frutos até a década de 1980. Mas o setor energético nacional não passaria incólume pela década perdida. A década foi perdida em função da crise inicialmente financeira, e depois política do Estado Brasileiro. A indústria energética, como parte do Estado Nacional, também experimentou a crise, financeira e institucional. Nossa indústria energética superou a crise e se reinventou na década de 1990 e, principalmente, na década de 2000. Entretanto, o processo de reforma que mudou a cara do setor energético nacional teve uma característica principal: aumentou incrivelmente a complexidade desta indústria e tornou muito mais difícil a relação entre o Estado e o setor energético.

Em primeiro lugar, com a entrada do capital privado aumentou muito o número de agentes atuando no setor energético. O setor que era formado por algumas dezenas de empresas estatais na década de 1980, passou a ser formado por milhares de empresas atuando nos diferentes setores energéticos (biocombustíveis, petróleo e gás natural, eletricidade). Antes, a elaboração de uma estratégia energética nacional dependia da visão do governo sobre os caminhos do desenvolvimento, e a industrialização era o caminho óbvio. Agora, não apenas o caminho deixou de ser óbvio, mas o governo é objeto de pressões das empresas e atores de cada segmento energético em busca de um “lugar ao sol” na política energética nacional. O resultado não podia ser outro: ao tentar um compromisso entre as mais diferentes visões e interesses do setor energético, nossa política energética perdeu sua capacidade de fazer escolhas e implementar orientações estratégicas.

Não é por outra razão que a política energética nacional apresenta planos e programas para todos os gostos e interesses: planos para expansão do setor elétrico que abrangem todas as fontes; metas para desenvolvimento dos biocombustíveis; metas para triplicar o tamanho do setor petrolífero; desenvolvimento da energia nuclear; plano para promoção da eficiência energética; metas de universalização do acesso; entre outros planos que poderiam ser citados. Estes planos, muitas vezes elaborados com participação de atores estatais diferentes não conseguiram evitar uma falha que perpassa todos os segmentos energéticos. Ou seja, nossa abundância de recursos energéticos não se traduz em vantagens competitivas para quem usa a energia.

2. Desafios do Investimento no Setor Energético

Nos últimos anos, o setor energético, em particular o segmento de óleo e gás  passou a ser uma importante oportunidade para a retomada do crescimento dos investimentos. As grandes descobertas de óleo e gás na província do Pré-Sal, o grande potencial do gás não convencional e das energias renováveis abriram oportunidades para transformar o Brasil num grande exportador de energia. Os cenários de crescimento da produção de petróleo e gás da Petrobras e do Governo Federal apontam para um forte aumento da participação dos investimentos em óleo e gás nos investimentos totais. A participação da indústria de óleo e gás nos investimentos totais da economia já tinha saído de 2% em 1995 para 9% em 2008.

Apesar da indústria de energia apresentar vantagens comparativas naturais (renda mineral) que abrem grandes oportunidades para os investimentos, a concretização destes não tem nada de natural. O setor energético tem uma especificidade importante que pode afetar a dinâmica dos investimentos que é a forte interferência do governo no setor. Ou seja, o Estado acaba sendo responsável por determinar as condições de valorização dos recursos naturais e, por consequência, do volume e ritmo de investimentos no setor.

No Brasil, apesar da abertura do setor energético para o capital privado com as reformas da década de 1990, o Estado continua tendo um papel central na determinação da dinâmica de investimentos. Agora não tanto através do investimento direto de recursos públicos, mas principalmente, pelas decisões de política energética que afetam o grau de rentabilidade dos projetos. As reformas no Brasil não permitiram retirar totalmente os recursos públicos dos investimentos diretos no setor energético. As empresas continuam em parte dependentes de recursos do tesouro para o financiamento de grandes projetos a taxas compatíveis, via o BNDES. A recente descapitalização das empresas estatais do setor elétrico através da condição desfavorável de renovação das concessões hidrelétricas tende a reforçar a dependência das empresas estatais dos recursos do tesouro.

Entretanto, no caso do setor energético, recursos do tesouro não bastam para garantir uma taxa elevada de investimentos; constatação fartamente demonstrada pela nossa própria experiência histórica do setor energético estatal. Além disso, e não menos importante, a estrutura industrial do setor energético atual já é dominada pelo capital privado. O processo de decisão dos investimentos é muito mais complexo e o governo tem pouco controle sobre este processo. Ressalte-se que independentemente do grau de intervenção do Estado na economia, a variável “investimento privado” não pode ser controlada pelo governo. Os investimentos acontecem apenas quando as empresas enxergam uma relação risco-retorno favorável para os seus investimentos.

A política energética nacional vem dando recorrentes sinais de que não entende ou desconsidera a complexidade do atual ambiente para os investimentos no setor energético nacional. Em particular, as mudanças repentinas de prioridades de política energética têm comprometido a rentabilidade de segmentos do setor energético criando uma enorme nuvem de incertezas para as empresas. Como exemplo, podemos citar as mudanças na política de precificação dos combustíveis que afetou negativamente a rentabilidade do segmento de Etanol; a política de preços do gás natural que paralisou a cadeia do GNV; mudanças repentinas e repetitivas nas regras dos leilões de geração que acaba arbitrando a competitividade das diferentes fontes energéticas; mudanças nas políticas de conteúdo local que afetam as condições de rentabilidade dos projetos.

Num contexto em que a decisão dos investimentos passa pelo crivo privado, a política energética deve não apenas guiar os investimentos para as fontes mais desejadas pela sociedade, mas garantir um nível almejado para os investimentos. Para isto, não basta definir “o que fazer”, ou seja, os caminhos da política energética, mas é muito importante “como fazer”. A própria política energética pode se transformar num importante fator de incerteza para os investimentos, caso o processo de decisão e implementação da mesma não seja minimamente previsível por parte dos agentes do setor.

É importante considerar que processo de decisão da política energética ocorre num contexto de interação com outras políticas de Estado. As políticas energéticas visam também atender prioridades que são externas ao setor energético (por exemplo: inflação, geração e transferência de renda). Entretanto, o grande desafio é definir bem as prioridades entre as políticas. Para isto, é muito importante considerar os efeitos das políticas setoriais sobre a dinâmica de investimentos do setor energético.

Nos últimos anos, o Brasil vem experimentando um período de forte “ativismo” do governo na formulação e modificação de prioridades da política energética. Isto ocorre em função de um ambiente econômico mais desafiante. Este ativismo se traduz em mudanças frequentes das principais orientações de política e do próprio padrão de funcionamento da regulação. Basta dizer que nos últimos três anos o país aprovou novas leis para o setor de petróleo e gás; o setor elétrico passou por uma profunda reforma do setor de geração e transmissão com a lei que renovou as concessões; inúmeras regulamentações vêm mudando as regras das revisões tarifárias, dos leilões no setor elétrico, do conteúdo local, e de operação do setor energético. Cada mudança afeta as condições de viabilidade dos projetos. O resultado desse processo é a deterioração significativa das condições de previsibilidade dos projetos nos últimos anos.

Neste contexto, é fundamental melhorar a percepção de risco regulatório e institucional para o setor energético. Sem um esforço por parte do governo neste sentido, o Brasil poderá não aproveitar totalmente as oportunidades que a indústria de energia apresenta para os investimentos. Em particular, é importante clarear o horizonte da indústria petrolífera nacional. Sem um posicionamento firme do governo de que a política de preços dos combustíveis estará alinhada com o objetivo da expansão, as condições dos investimentos no setor petrolífero nacional não estarão dadas. Da mesma forma, é importante estar atento aos custos impostos aos projetos no Brasil em função da política de conteúdo local. Esta política é importante para a economia nacional, mas não pode ser vista como um objetivo em si mesmo. A viabilidade econômica dos projetos deve ser garantida inclusive para garantir um maior volume de compras locais.

No setor elétrico, a questão fundamental é a definição de uma visão de futuro. Este setor carece de diretrizes claras de política energética, uma vez que várias questões-chave não estão definidas. Em particular, o governo tem dificuldades políticas para definir e implementar diretrizes para fontes energéticas importantes como as hidrelétricas e a geração nuclear. A questão da construção de hidrelétricas na Região Amazônica e a possibilidade ou não de se construir hidrelétricas com reservatórios é fundamental para uma visão de futuro do setor elétrico. A dificuldade aqui é construir uma agenda de debates com a sociedade que permita desembocar em um processo de decisão política. O mesmo acontece para a energia nuclear e o carvão. Sem uma visão clara a respeito do futuro reservado a estas fontes energéticas, a definição de estratégias por parte do governo e do setor privado para as outras fontes energéticas (gás natural e renováveis) fica comprometida.

Desse modo, pode-se afirmar que o Brasil carece de uma convergência em torno de uma visão de futuro sobre o setor energético nacional; ao mesmo tempo em que florescem diferentes visões para questões de curto-prazo por parte do governo. Desta forma, a melhoria do ambiente de investimento passa por um ativismo maior do governo em prol de uma definição mais clara de uma agenda de longo-prazo, e por um menor ativismo regulatório errático nas questões de curto-prazo. O caminho da sustentabilidade e aceleração dos investimentos no setor energético passa pela melhoria do ambiente de investimentos para as empresas. Quanto melhor este ambiente, menos o setor energético precisará de recursos públicos para sua expansão.

3. Desafios da Correta Precificação da Energia

Com a descoberta do pré-sal o Brasil colocou na sua agenda aquele que deve se tornar o principal desafio da política energética nacional nas próximas décadas. Mais precisamente, trata-se da tentação política de praticar preços de combustíveis no país abaixo dos praticados no mercado internacional. Os países que são exportadores de petróleo em sua grande maioria acabam cedendo à esta tentação política, com grandes impactos negativos para a política econômica e energética.

O Brasil pelejou com este problema constantemente durante as décadas de descontrole inflacionário. Naquele momento, o país era grande importador de petróleo. O fato de segurar os preços do petróleo tinha efeitos econômicos desastrosos para a Petrobras e também para as contas públicas. Foi justamente a consciência de que as conseqüências seriam desastrosas que garantiu um mínimo de racionalidade na política de preços de combustíveis no Brasil ao longo do tempo.

Atualmente, no limiar de se tornar um grande exportador de petróleo, uma nova visão do problema vem se instalando em algumas esferas políticas e do governo. Seria a ideia de que a autossuficiência na produção de petróleo e derivados dará à Petrobras maior margem para não seguir o mercado internacional de derivados. Esta é uma visão tácita. Não é fruto de uma reflexão técnica e política.

À primeira vista, a nova versão do velho dilema “maior controle da inflação” versus “política racional de preços de combustíveis” parece pender mais para o controle da inflação. Ou seja, o segundo objetivo poderia ser sacrificado para privilegiar o primeiro, já que as conseqüências de uma política de preços desalinhados não seriam tão nefastas como outrora. Esta visão é muito perigosa, pois o não alinhamento dos preços dos combustíveis domésticos com o mercado internacional tem o mesmo poder destrutivo para a economia nacional e para o setor energético que sempre teve.

Em primeiro lugar, vale ressaltar que boa parte da expansão prevista para a indústria nacional está ancorada no ambicioso programa de investimentos da Petrobras. Este por sua vez depende do desempenho econômico da empresa e da sua credibilidade no mercado financeiro. Se a condição de ser estatal implica em praticar um preço de petróleo significativamente inferior aos das outras empresas atuando no Brasil e no mercado internacional, a credibilidade econômica da Petrobras passa a estar em xeque. Neste contexto, dificilmente a Petrobras conseguirá mobilizar os recursos necessários para cumprir com seu plano de expansão.

A prática persistente de preços de derivados mais baixos que no mercado internacional não traz prejuízos apenas para a Petrobras. Esta prática introduz incertezas econômicas importantes com conseqüências para todo o setor energético nacional. Os vultosos investimentos da indústria de bens e serviços para o setor de petróleo dependem da expectativa dos investimentos da Petrobras e seus parceiros. Vale ressaltar que a política de conteúdo local na expansão da indústria de petróleo e gás constitui um elemento estruturante da atual política industrial do país.

Para além do setor petrolífero, a manutenção dos preços domésticos desalinhados com o mercado internacional coloca em cheque um bastião importante da política energética nacional, que é o programa do etanol. O represamento dos preços da gasolina significa na prática um controle indireto dos preços do etanol hidratado usado nos carros flex. Isto cria uma distorção importante no mercado de etanol, na medida em que o etanol anidro (misturado na gasolina) não tem um limite para a evolução dos preços. Ou seja, a política de preços para a gasolina está dando um sinal claro para os produtores. O negócio do etanol hidratado é mais arriscado! Melhor é focar na produção do açúcar e no etanol anidro. Este último não tem preços controlados na medida em que a mistura com a gasolina é obrigatória. Ou seja, os produtores de gasolina C têm que comprar o etanol anidro pelo preço que tiver valendo no mercado. Uma política de forte represamento dos preços da gasolina certamente resultaria na morte do programa do etanol hidratado a médio e longoprazos.

Estas razões já seriam suficientes para se convencer de que a importância do alinhamento dos preços não diminuiu no contexto atual. Entretanto, é importante ressaltar a grande transformação em curso na estrutura da indústria de petróleo nacional. A participação de novos atores na produção vem crescendo e tende a aumentar. Num cenário de médio prazo poderemos ter empresas privadas nacionais e internacionais produzindo volumes muito grandes de petróleo. Se a política de precificação atual não mudar, teremos a Petrobras vendendo petróleo no Brasil a preços abaixo do mercado enquanto seus concorrentes poderão exportar o petróleo (às vezes de um mesmo campo) a preços internacionais. Num contexto de competição no upstream, o fardo que carregaria a Petrobras pode se tornar demasiadamente pesado.

Neste contexto, é importante se perguntar se ainda é sustentável um tratamento diferenciado à Petrobras na questão da precificação dos combustíveis. Já é hora de se iniciar uma reflexão sobre os objetivos, os instrumentos e as opções para a política de precificação dos combustíveis no Brasil.

Esta discussão não precisa abrir mão de algumas premissas importantes da política atual. O governo sempre anunciou claramente que quer evitar uma volatilidade nos preços dos combustíveis na bomba. Certamente, a redução deste tipo de volatilidade é uma política legítima. Entretanto, existem opções de política para se obter este mesmo resultado.

Para iniciar a discussão é importante separar o problema da volatilidade do problema da carestia. Num cenário de grande variação e elevação dos preços do petróleo no mercado internacional, existem dois problemas diferentes: a volatilidade e a carestia. O governo não pode atacar os dois ao mesmo tempo e dizer que está apenas evitando a volatilidade. Para cada um existem opções de política diferentes.

Com relação à volatilidade de preços, dois tipos de políticas podem ser observados na experiência internacional: o uso de uma empresa estatal para evitar a volatilidade ou a criação de um fundo de estabilização de preços. O primeiro caso é utilizado em países produtores onde existe uma empresa totalmente estatal que detém o monopólio legal da produção e do refino do petróleo. Certamente, este não é o caso da Petrobras.

A segunda opção é mais utilizada em países importadores de petróleo e derivados (Chile e Peru, por exemplo), mas nada impede que seja praticada em países produtores e exportadores. No caso dos fundos de estabilização, empresas importadoras ou refinadoras têm seus preços de venda para as distribuidoras controlados pelo governo. Entretanto, os importadores e os refinadores têm a garantia de receber do fundo de estabilização a diferença, caso os preços autorizados sejam inferiores ao do mercado internacional. O fundo pode ser alimentado por uma pequena parte dos impostos sobre os combustíveis. Neste modelo, periodicamente o governo avalia se é necessário reajustar os preços. Caso o fundo ainda tenha recursos, poderá optar por esperar um momento mais adequado para fazê-lo. Existem muitas variantes de modelos de estabilização de preços. É importante estudar as melhores opções para o caso Brasileiro. Entretanto, uma vantagem importante deste tipo de política é dar uma maior transparência ao mercado e maior segurança econômica a todo o setor energético nacional, principalmente à Petrobras.

A questão da carestia não é menos importante. Entretanto, tem uma natureza muito diferente do problema da volatilidade. É importante admitir que os preços dos combustíveis no Brasil são elevados quando comparados com países de mesmo nível de renda per-capita. Entretanto, vale ressaltar que foi por causa desta política de realismo de preços que o Brasil conseguiu avançar na indústria petrolífera e liderar a indústria dos biocombustíveis. No longo-prazo, uma política importante para enfrentar a carestia dos combustíveis é a promoção da eficiência energética. O Brasil parece ter deixado para um segundo plano sua política de promoção de economia de combustíveis nos automóveis.

Num contexto de possível elevação e fortes picos no preço do petróleo no mercado internacional, é importante que o governo busque instrumentos para mitigar a carestia que vão além de um fundo de estabilização. Para este fim, o instrumento mais adequado é a variação da taxação dos combustíveis. A atual estrutura tributária dos combustíveis no Brasil não é suficientemente flexível. O governo federal tem apenas um instrumento tributário para variar a taxação que é a CIDE. Entretanto, este imposto representa uma parte pequena da carga tributária. Num contexto de forte elevação dos preços do mercado internacional, o governo federal pode fazer pouco para desonerar os combustíveis. Acaba tentando evitar a carestia diminuindo a remuneração da Petrobras.

Os argumentos listados acima mostram que chegou o momento para uma discussão franca na sociedade brasileira sobre nossa política de combustíveis. Não podemos negar que o atual modelo de precificação dos combustíveis funcionou adequadamente após a reforma que “liberalizou” os preços no início da década de 2000. O país pôde dar um grande salto e se destacar na indústria energética mundial. Mas este modelo está dando fortes sinais de esgotamento e traz implicitamente riscos que não deveriam ser tolerados por uma política energética responsável

4. O Desafio da Difusão das Novas Energias Renováveis

As descobertas das grandes reservas de petróleo e gás da área do Pré-sal têm o potencial de colocar o Brasil, um país tradicionalmente importador de energia, no seleto clube dos grandes exportadores de petróleo. Estas descobertas têm implicações não apenas para o papel do Brasil na geopolítica internacional da energia, mas também representam um grande desafio para a política energética nacional.

Historicamente, a política energética brasileira se caracterizou pela busca da autossuficiência na produção de energia. Como o Brasil não era um país rico em fontes de energia tradicionais (petróleo, gás natural, e carvão), a política energética nacional buscou incentivar fontes de energias alternativas abundantes no país, tais como hidroeletricidade e os biocombustíveis. Isto fez do Brasil um campeão entre os países industrializados no que tange à participação das energias renováveis na matriz energética (46%). O recente cenário de abundância de petróleo e gás coloca o desafio da manutenção de um ambiente econômico e regulatório favorável às fontes de energia renováveis.

O petróleo não é a energia do futuro! Esta afirmação não requer maiores explicações. O petróleo pode ser a fonte de energia com o custo de produção mais barato atualmente. Entretanto, estes custos são crescentes por dois motivos: i) em função da sua tendência à escassez; ii) a tendência de se incluir os custos relacionados às emissões de gases de efeito estufa no preço do petróleo. Ou seja, o petróleo será cada vez mais caro. Em um futuro próximo, o petróleo não será mais a fonte de energia mais barata disponível. Isso levará a uma transição em direção a fontes de energia que sejam mais abundantes, mais baratas e possivelmente renováveis.

O Brasil já tem um caminho trilhado no que tange as energias do futuro. O grande desafio é não retroceder no novo contexto de abundância de petróleo. O que seria um retrocesso? Certamente, o maior retrocesso seria o país abandonar a política energética que historicamente buscou promover a diversificação da matriz energética nacional, em particular em direção às energias renováveis. O maior perigo é a tentação de se adotar uma nova política de barateamento dos preços dos combustíveis. Esta política representaria um alívio no bolso dos consumidores e certamente muitos votos. Mas representaria também a morte dos biocombustíveis no Brasil. Da mesma forma, a disponibilização de gás natural barato representaria a morte do uso de algumas fontes renováveis que hoje são relativamente caras na geração de eletricidade (eólica, biomassa e pequenas centrais hidrelétricas).

Além de uma política de preços que sinalize aos consumidores e aos investidores que as energias renováveis são efetivamente as energias do futuro, o Brasil ainda tem grandes desafios institucionais para viabilizar o aproveitamento do seu potencial de energia renovável. A crescente resistência da opinião pública no que tange o aproveitamento do potencial hidrelétrico na Amazônia, sem uma discussão mais aprofundada sobre as opções, contribui para reduzir a possibilidade de escolha quanto às fontes energéticas para suprir o crescimento do país. O Brasil é o único país industrializado no qual ainda existe um grande potencial de geração hidrelétrica. Este potencial foi aproveitado até o seu esgotamento na Europa e nos Estados Unidos. Ao abrir mão de aproveitar o restante do seu potencial hidráulico, o Brasil estará optando por utilizar de forma muito mais intensiva as outras fontes energéticas convencionais como óleo, carvão, gás natural e nuclear.

Ao compararmos Belo Monte, por exemplo, com as outras opções para expansão da oferta de eletricidade nos próximos anos fica claro que, caso Belo Monte não se concretize, o custo da nossa energia gerada e do nível das emissões de gases de efeito estufa teria um aumento expressivo. Por um lado, não existem outros projetos hidrelétricos prontos para serem licitados para substituir o projeto Belo Monte. Por outro lado, não é economicamente viável neste momento substituir a quantidade de energia a ser ofertada por outras fontes renováveis (eólica, biomassa ou pequenas centrais hidrelétricas). Ou seja, se o projeto Belo Monte não for adiante, o Brasil terá necessariamente que aumentar a contratação de energia gerada por termelétricas movidas a gás natural e/ou carvão.

Além do desafio institucional de criar condições para aproveitar os recursos renováveis que hoje são economicamente viáveis, o Brasil deve enfrentar o desafio de se tornar um protagonista no esforço de inovação tecnológica nas energias do futuro. O Brasil deve integrar na sua agenda de política energética uma estratégia de investimento em inovação nas energias do futuro. Atualmente, o Brasil investe de maneira importante em pesquisa e desenvolvimento (P&D) na área de exploração e produção de petróleo através do esforço da Petrobras. O Brasil também investe em tecnologias para a produção do etanol, em particular na área agrícola, com destaque para o papel da Embrapa. Entretanto, os investimentos brasileiros em P&D nas novas fontes de energia ainda são muito tímidos sem nenhum tipo de estratégia tecnológica. Cabe ao governo brasileiro traçar uma estratégia tecnológica para o país nesta área, e não apenas disponibilizar recursos.

5. O Desafio da Difusão do Gás Natural

O desenvolvimento recente da indústria de gás natural no Brasil ocorreu num contexto de relativa escassez de gás nacional. As reservas e a produção brasileira eram modestas, e em sua grande maioria proveniente de campos gás associado pertencentes à Petrobras. Por isto mesmo, a difusão do gás natural no país só se alavancou com o contrato de importação da Bolívia que viabilizou a construção do gasoduto Bolívia-Brasil.

Esse contexto de escassez teve seu auge entre 2006 e 2008, quando a instabilidade política na Bolívia inviabilizou o aumento do volume importado daquele país. A escassez de gás nesse período levou a Petrobras a elevar os preços do gás doméstico e importado e a se lançar em um enorme esforço para aumentar a produção doméstica e diversificar as importações via GNL. Esse contexto de escassez e preços elevados do gás foi uma premissa importante do planejamento e regulação da indústria de gás no Brasil.

Nos últimos anos o país vem colecionando boas notícias com relação a descobertas de gás natural. As descobertas do Pré-sal apresentam um grande potencial para produção de gás. Em média, os campos de óleo descobertos na área do pré-sal da Bacia de Santos contêm 20% de gás natural. Estimativas da Petrobrás dão conta de um potencial produtivo de cerca de 40 milhões de metros cúbicos por dia (Mm³/dia), apenas no cluster de Santos.

Além das descobertas no Pré-sal, a exploração nas Bacias de São Francisco (Minas Gerais), Solimões (Amazonas) e Parnaíba (Maranhão) vem apontando um grande potencial produtivo para o gás natural, inclusive de gás não-convencional (Gás de Xisto). No caso destas três bacias, o potencial produtivo é de gás não associado. Portanto, a produção somente se viabilizará caso haja mercado capaz de pagar um preço que possa cobrir os custos de produção e transporte do gás natural.

Se por um lado essas descobertas de gás natural representam um grande potencial econômico para o país, por outro lado não será fácil viabilizar o aproveitamento das mesmas. Um dos principais desafios no planejamento energético viabilizar o aproveitamento dos recursos e reservas de gás recentemente identificados na Amazônia, no Maranhão e no Pré-sal.

O aproveitamento do potencial de produção de gás no Brasil irá requerer um grande volume de investimentos em Exploração & Produção (E&P) e no transporte de gás. Na indústria de gás natural, os investimentos no upstream e transporte só se viabilizam se houver mercado garantido para este gás. Ou seja, os investidores primeiro tentam assinar contratos de venda da produção futura do gás para depois injetar recursos na produção e transporte. Isto é necessário porque o gás natural não é uma commodity que pode ser transportada e comercializada para qualquer mercado, como é o caso do petróleo. No caso do gás natural, os investimentos em transporte já definem onde e quem irá comprar o gás natural.

Em algumas regiões, como na Amazônia e possivelmente no Maranhão, não existe um mercado de gás significativo a não ser o uso do gás para produção de eletricidade. Ou seja, dado os grandes volumes descobertos, somente novas termelétricas poderiam criar um mercado com volume suficiente para justificar os investimentos em produção e transporte. Atualmente, o arcabouço regulatório do setor elétrico dificulta o aproveitamento de reservas de gás natural com uso exclusivo no setor elétrico. Isto ocorre porque as termelétricas operam de forma complementar à geração hidráulica. Ou seja, caso haja água nos reservatórios das hidrelétricas as termelétricas ficam desligadas, configurando uma situação na qual elas acabam operando menos de 30% do tempo.

Em função disso, o contrato de venda de gás para as térmicas que entram no leilão da ANEEL pressupõe uma operação de apenas 25% do tempo. Nestas condições, as térmicas não podem dar garantias de compra de gás e, portanto, não podem ancorar projetos para desenvolvimento das reservas de gás natural. No caso da Amazônia, o governo brasileiro terá que optar entre deixar as reservas no chão, desperdiçando este potencial energético e econômico ou mudar as regras do setor elétrico para permitir que as térmicas que usem este gás operem de forma ininterrupta. O custo de mudar a regra seria mais emissões de CO2, já que eventualmente estas térmicas operariam inclusive em momentos em que as hidrelétricas tivessem capacidade de produção – ou seja, água nos reservatórios. Esta será uma decisão de política energética muito difícil, cujo debate certamente irá envolver vários segmentos da sociedade nacional.

O desafio da futura abundância de gás não se restringe a criar mercados para o gás. Mesmo com o encaminhamento de uma solução para esta questão, restarão importantes desafios associados à regulação da própria indústria do gás natural. Um dos principais desafios será fazer valer a nova lei do gás natural. Esta nova lei mudou radicalmente a dinâmica dos investimentos em transporte de gás natural no Brasil. De acordo com a nova lei, os investimentos em transporte deverão ocorrer a partir de um processo licitatório no qual o investidor no gasoduto será selecionado pelo critério da menor tarifa requerida. Entretanto, para que uma licitação possa ocorrer, o Ministério de Minas e Energia (MME) deverá realizar um plano de expansão da rede de gás. Em seguida, a Agência Nacional de Petróleo (ANP) deverá realizar um concurso para alocação de capacidade no qual os futuros compradores de gás se engajarão em contratar antecipadamente serviços de transporte de gás natural.

A realização do plano de expansão da rede de transporte de gás não será uma tarefa fácil. Por um lado, a sua realização depende de premissas sobre onde e quem irá consumir o gás natural. Este plano pode se tornar inócuo caso parta de premissas equivocadas. De nada adianta uma plano de expansão da rede de transporte de gás se não aparecerem carregadores interessados em comprar a capacidade de transporte dos gasodutos. Por outro lado, para que as termelétricas possam ser um mercado importante para ancorar os investimentos nos gasodutos será necessário redefinir a forma de operação destas térmicas no setor elétrico brasileiro.

A viabilização dos investimentos necessários ao aproveitamento do potencial produtivo de gás natural no Brasil representará um grande desafio com várias dimensões. Em primeiro lugar será necessário tomar importantes decisões de política energética que podem afetar o planejamento da expansão do setor de gás e eletricidade. Em segundo lugar, será necessário um grande esforço de coordenação institucional para buscar uma convergência entre os diferentes órgãos do governo envolvidos no processo (EPE, ANEEL, MME, Petrobras e ANP). O planejamento deverá ser realizado pelo Estado, mas deverá levar em conta os interesses dos produtores e dos consumidores de gás natural, já que são estes que, em última instância, estarão mobilizando os recursos para viabilizar a expansão da produção. Portanto, será necessário que o Governo tenha capacidade de estabelecer um diálogo com o setor produtivo, resguardando a sua independência para perseguir seus objetivos de política energética.

O exposto acima deixa claro que, no caso do gás natural, ser “abençoado por Deus” não basta. O Brasil precisará mobilizar uma quantidade importante de “recursos institucionais” para enfrentar questões políticas e econômicas muito complexas colocadas pela futura abundância de gás natural.

Conclusão

Com uma diversificada e generosa dotação de recursos energéticos, o grande desafio da energia no Brasil é transformar esta dotação em uma alavanca para o desenvolvimento econômico e social do país.

Desafio este que passa inexoravelmente pela definição de uma política energética inserida em uma estratégia nacional de desenvolvimento que não apenas contemple a questão do atendimento da energia necessária a esse desenvolvimento, mas que, acima de tudo, induza a esse desenvolvimento, mediante a exploração das possibilidades de articulações sinérgicas entre o forte crescimento do setor de energia e os demais setores da economia.

Uma política energética que enfrente a difícil compatibilização entre as diferentes fontes, cadeias e interesses, advinda, justamente, da amplitude da matriz de recursos naturais, que torna, por um lado, as escolhas mais ricas, porém, por outro, muito mais complexas.

Uma política energética que não se perca na tentação fácil das soluções confortáveis do curto prazo, de níveis de preços e competitividades artificiais, que propiciam ganhos políticos imediatos, mas que colocam em xeque a sustentabilidade do processo de desenvolvimento de longo prazo pela fragilização do seu pilar energético.

Uma política energética que mantenha a matriz energética brasileira limpa, incorporando as novas fontes de energia renováveis (solar e eólica) e mantendo as tradicionais (principalmente a hidráulica) mediante uma nova concepção do seu papel no setor elétrico que não só consolide a sua participação de forma sustentável como também alavanque a participação das outras renováveis.

Na verdade, o setor energético brasileiro se encontra no limiar de profundas transformações. Assim como nos anos cinquenta o Brasil soube inventar um setor de energia capaz de sustentar o seu desenvolvimento; agora é necessário reinventar esse setor para fazer face a uma nova e distinta etapa do desenvolvimento brasileiro.

Se por ventura o desafio hoje parece maior, cabe lembrar que os recursos disponíveis hoje também são maiores. Mais uma vez trata-se de encontrar a energia do Brasil – lembrando o livro clássico do professor Dias Leite -. Trata-se de encontrar aquele fator que mais uma vez possa nos dar uma vantagem competitiva decisiva no contexto internacional cada vez mais competitivo. Esse fator pode ser a energia. Mas para que isso aconteça é preciso ir muito além dos esboços que nos são apresentados, transvestidos de fundamentos de uma política energética nacional.

Em suma, há que se encontrar a nova energia do Brasil.

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