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Andre de Melo Modenesi

Introdução

A política monetária (PM) brasileira no século XXI constitui verdadeira anomalia. Apesar de inaugurada em 1995 uma fase de relativa estabilidade de preços com o Plano Real, o Banco Central do Brasil (BCB) tem mantido a taxa básica de juros (Selic) em níveis excessivamente elevados: o país vem alcançando recordes mundiais em termos de taxa de juros reais.

Após a implementação do Real e adotado o regime de metas de inflação (RMI), em 1999, a expectativa era de que, na medida em que se fosse consolidando a estabilização dos preços, a Selic passasse a ser significativamente reduzida, convergindo para níveis prevalecentes nas economias com preços estáveis. Não foi o que aconteceu. Mesmo a despeito de ter sido promovida uma inflexão da política fiscal, com a geração de superávits primários, a partir de 1999. Entre esse ano e o de 2012, a Selic real média foi superior a 8% a.a. Embora tenha sido reduzida a partir do ano de 2000, a Selic ainda permanece demasiadamente alta.

Não obstante a rigidez da PM pós Plano Real, a inflação vem-se mantendo em patamares que podem ser considerados elevados, principalmente com relação à experiência internacional. No período de 1995 a 2012, o IPCA ficou abaixo de 5% em apenas quatro anos, atingindo média pouco superior a 7%. Em suma, apesar da longa manutenção da Selic em níveis inusitados, a inflação tem cedido pouco.

De fato, surpreende a persistente coexistência de taxas reais de juros anormalmente altas com níveis relativamente elevados de inflação. A propósito, há um conjunto amplo de evidências de que há falhas na transmissão da PM. A inflação tem-se mostrado pouco sensível ao nível de atividade econômica: é preciso uma retração de grandes proporções para se obter uma queda relativamente pequena da inflação. Por isso, o BCB não tem sido capaz de trazer o IPCA para menos de 4~5% a.a. — apesar das altas taxas de juros.

O excesso de rigidez que singulariza a PM no Brasil pós Plano Real é um fenômeno complexo que não pode ser explicado, isoladamente, por uma única tese. Sem embargo, dentre as várias hipóteses para explicar o chamado problema da taxa de juros, destaca-se a de que há falhas no mecanismo de transmissão da PM.[1]

Como será visto, a existência de problemas no mecanismo de transmissão amplifica o sacrifício imposto pela estratégia de combate a inflação — centrada no uso da taxa de juros — à sociedade brasileira. Por um lado, a inflação tem-se mostrado pouco sensível à Selic. Por outro, o custo de uma redução da inflação — dado pela retração da atividade econômica, valorização cambial e piora nas contas públicas — tem sido alto. Assim, a experiência recente indica que o balanço entre custos e benefícios da estratégia de estabilização é desfavorável. Assim, se preconiza uma mudança na estratégia de estabilização: ela não deve se centrar no gerenciamento da demanda agregada — por meio de apenas um instrumento, a Selic. A política de estabilização de preços deve ser multidimensional, fundamentada em medidas não monetárias — eventualmente complementada por instrumentos monetários, dependendo da natureza inflação.

 

1. Inflação e política monetária durante o Plano Real (1995-1998)

A adoção do Plano Real constitui um dos mais relevantes eventos da história econômica brasileira contemporânea, ao ter encerrado a sucessão de cinco tentativas fracassadas de combate à inflação que marcou a condução da política econômica do país por uma década: planos Cruzado (1986), Bresser (1987), Verão (1989), Collor I (1990) e Collor II (1991). Somente em 1994, com o Real, é que se interrompeu o longo processo de alta inflação crônica que se intensificou a partir de meados dos anos de 1980 (Gráfico 1).

 

Gráfico 1
Taxa de Variação do IPCA (% a.m.) — Brasil: Jan./1985-Mai./2013

Capitulo3-1

Fonte: BCB e IBGE.

 

Tratou-se de uma estratégia de estabilização de preços implementada em três fases, entre 1993 e início de 1999 (Modenesi, 2005: Cap. 5). As etapas do Plano podem ser assim sumariadas: i) realização de ajuste fiscal de curto prazo — com a criação do Plano de Ação Imediata e do Fundo Social de Emergência; ii) desindexação parcial da economia por meio de uma reforma monetária — criando-se uma unidade de conta plenamente indexada, a Unidade Real de Valor, posteriormente transformada em moeda, o real, que substituiu o cruzeiro real; e iii) utilização de âncora cambial — caracterizada pela manutenção do real artificialmente sobrevalorizado por parte do BCB.

A despeito do sucesso inequívoco do Plano no controle da inflação, e da preservação de um ambiente de estabilidade de preços, o BCB permanece até hoje mantendo a taxa básica de juros (Selic) em patamares demasiadamente elevados. De tal modo que a PM, no Brasil, transformou-se em verdadeira anomalia, principalmente quando comparada com a experiência internacional: o país tem praticado as maiores taxas de juros reais do mundo.

Durante o período de implantação do Real, a PM era conduzida com o objetivo de controlar o volume das reservas internacionais. As elevadas necessidades de financiamento do balanço de pagamentos — entre 1995 e 1998, a conta corrente acumulou déficit de cerca de US$ 110 bilhões — somadas à fragilidade da recém conquistada estabilidade de preços eram freqüentemente apontadas como principais justificativas para a excessiva rigidez monetária. Além disso, a política fiscal do primeiro governo do Presidente Cardoso — com a geração de déficits primários — era assinalada como uma das causas dessa rigidez.

Com isso, a taxa Selic real aproximou-se de 30% a.a., nos anos de 1995 e de 1998, ficando acima de 16% a.a., durante toda a implementação do Plano. No quadriênio de 1995 a 1998, a sua média foi superior a 22% a.a.

 

Gráfico 2
Taxa Selic Deflacionada pelo IPCA (% a.a.) — Brasil: 1995-1998

Capitulo3-2

Fonte: BCB e IBGE.

 

2. Inflação e política monetária sob o regime de metas de inflação (1999-2012)

A experiência brasileira com o RMI pode ser dividida em duas fases. Anteriormente a crise do subprime, observa-se uma espécie de era de ouro do chamado tripé de política econômica. Neste período as metas de inflação foram rigidamente perseguidas e a política monetária condicionou fortemente as políticas cambial e fiscal. Após a crise do subprime, verificou-se uma flexibilização do tripé e uma reorientação — ainda que tímida — na estratégia de combate à inflação.

 

2.1. Política monetária e combate a inflação antes da crise do subprime: a era de ouro do tripé (1999-2008)

Em 1998-1999, a economia brasileira sofreu um ataque especulativo que culminou na substituição da âncora cambial pelo RMI. Assim, foi implementado no Brasil um regime de política econômica fundado no chamado tripé de política econômica: 1) RMI; 2) câmbio flutuante, conjugado com alto grau de mobilidade de capitais; e 3) metas de superávit primário. Do ponto de vista teórico, há um alinhamento com o chamado Novo Consenso Macroeconômico, marcado pela assunção da hipótese de existência da taxa natural de desemprego e a consequente aceitação da neutralidade da moeda no longo prazo — a política monetária (PM) não afeta variáveis reais, como o PIB e o emprego, de forma sustentável no tempo. Vale notar que se trata de um regime que se distancia radicalmente da teoria de Keynes, fundamentada no princípio da demanda efetiva e na negação da taxa natural de desemprego e da neutralidade da moeda.

Grosso modo, a PM era hierarquicamente superior às demais: a política econômica focou a estabilização dos preços, que caberia exclusivamente à PM — por meio de apenas um instrumento, a taxa básica de Juros. O câmbio deveria flutuar, respondendo à PM e aos fluxos cambiais. A política fiscal foi coadjuvante: limitou-se a não criar pressões inflacionárias, mantendo-se restritiva. O crescimento econômico ficou em segundo plano.

A despeito do temor de muitos, o overshooting da taxa de câmbio não implicou na volta da inflação e a estabilidade foi preservada (Gráfico 4). Com a consolidação da estabilidade de preços — marcada pela substituição da âncora cambial pelo RMI — esperava-se que a Selic pudesse ser reduzida de forma significativa, aproximando-se das taxas verificadas no resto do mundo. No entanto, isso não aconteceu, mesmo a despeito da expressiva inflexão na política fiscal — com o cumprimento de metas de superávit primário de cerca de 4% do PIB —, ocorrida a partir de 1999. Entre 1999 e 2012, a Selic real manteve-se acima de um dígito em cinco ocasiões (1999, 2000, 2003, 2005 e 2006) e sua média superou 8% a.a.

 

Gráfico 3
Taxa Selic Deflacionada pelo IPCA (% a.a.) — Brasil: 1999-2012

Capitulo3-3

Fonte: BCB e IBGE.

 

É verdade que a Selic real caiu de forma não desprezível, sobretudo a partir do ano de 2000. Todavia, ela ainda se encontra em um patamar muito alto. Portanto, a PM brasileira ainda constitui uma anormalidade, particularmente quando comparada com a experiência internacional. Por exemplo, no período de 2000 a 2008, a taxa básica de juros no Brasil foi, em média, consideravelmente maior do que a praticada nos principais países da América Latina (Tabela 1).

 

Tabela 1
Taxa Básica de Juros (% a.a.) — Países da América Latina: 1995-2008

País 1995-1999 2000-2005 2006 2007 2008
Argentina 7,22 14,04 7,20 8,67 10,10
Bolívia 16,56 5,74 3,80 4,27 7,68
Brasil 32,34 18,82 15,30 12,00 12,40
Chile 4,85 5,02 5,36 7,11
Colômbia 25,68 7,92 6,49 8,66 9,72
República Dominicana 14,93 19,98 10,60 8,24 12,20
El Salvador 10,18 5,00 6,00 5,25
Guatemala 7,87 8,07 6,56
México 33,48 10,27 7,51 7,66 8,28
Panamá 2,19 5,06 5,05
Paraguai 17,42 9,00 8,33 3,93 4,25
Peru 14,50 4,53 4,51 4,99 6,54
Venezuela 13,82 11,76 5,26 8,72 11,10
Média (incluindo o Brasil) 17,64 9,40 7,05 6,90 8,94
Média (excluindo o Brasil) 16,17 8,61 6,36 6,44 8,55
 Fonte: World Economic Outlook e International Financial Statistics.

 

Apesar de o país praticar uma taxa de juros superior àquelas empregadas por seus pares latino-americanos, a inflação permanece em patamares relativamente elevados. Entre os anos de 1995 e 2008, a inflação manteve-se abaixo de 5% a.a. em apenas 3 ocasiões (em 1998, 2006, e 2007), tendo sua média alcançado 8%. Trata-se de claro sinal de que há problemas na transmissão da política monetária: a despeito das doses cavalares de juros, a inflação mostra-se muito resiliente (Gráfico 1).

 

Gráfico 4
Taxa de Variação do IPCA (% a.a.) — Brasil: 1995-2012

Capitulo3-4

Fonte: IBGE.

 

Na Tabela 2, encontra-se o número de países por faixa de inflação, dentre um total de cerca de 30 nações latino-americanas. Entre 1980 e 2008, constata-se forte redução das taxas de inflação nos principais países da América Latina. Em 1980, em todos eles se verificou inflação superior a 10% a.a. A partir do ano de 2000, na vasta maioria desses países a inflação foi igual ou inferior a 10% a.a. Em cerca da metade deles, a inflação foi menor que 5% a.a., no mesmo período.

 

Tabela 2
Número de Países por Faixa de Inflação (% a.a.) — América Latina: 1980-2008

Var. % anual 28 países latino-americanos1
1980 1985 1990 1995 2000 2002 2004 2005 2006 2007 2008
0 7 5 7 12 12 16 12 12 10 2
0 1 1 3 7 10 7 12 10 13 16
13 5 3 8 5 4 2 4 4 3 8
7 6 9 6 0 2 2 0 0 0 1
2 2 4 2 1 0 1 0 0 0 0
1 1 0 1 0 0 0 0 0 0 0
0 0 0 0 1 0 0 0 0 0 0
1 5 5 1 0 0 0 0 0 0 0
Total 24 27 27 28 26 28 28 28 26 26 27
 Fonte: World Economic Outlook e International Financial Statistics. (1)Argentina, Aruba, Bahamas, Barbados, Belize, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Republica Dominicana, Equador, El Salvador, Guatemala, Guiana, Haiti, Honduras, Jamaica, México, Antilhas, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Suriname, Trinidad e Tobago, Uruguai e Venezuela.

 

A despeito da rigidez que singulariza a PM brasileira, a inflação no país, também mostra-se acima da média mundial, entre os anos de 1995 e 2008. As taxas anuais de inflação por grupos de países da economia mundial estão na Tabela 3. No mesmo período, o índice de preços ao consumidor apresentou, no país, variação consideravelmente maior do que a observada nas economias industrializadas, que ronda os 2% a.a. Com relação às economias em desenvolvimento, a inflação brasileira também se mostra elevada, notadamente entre os anos de 2000 e 2007. Nesse período, a inflação média desse grupo aproximou-se de 6% a.a. enquanto que, no Brasil, o IPCA registrou variação ligeiramente acima de 7% a.a. (Tabela 3).

 

Tabela 3
Taxas Anuais de Inflação (%) — Grupos de Países: 1995-2008

Região 1995-1999 2000-2005 2006 2007 2008
Mundo 8,10 3,91 3,71 4,01 5,98
Industrializados 2,03 2,03 2,35 2,16 3,38
Em desenvolvimento 19,88 6,97 5,59 6,44 9,26
 Fonte: World Economic Outlook e International Financial Statistics.

 

Em suma, a PM foi marcada por um excesso de rigidez, que se manteve mesmo após a consolidação da estabilidade de preços e a implantação tripé de política econômica. No Gráfico 3, encontram-se as taxas básicas de juros reais verificadas no país, nas economias emergentes e na Turquia, que disputa com o Brasil o primeiro lugar no ranking das maiores taxas de juros. No período de 1995 a 2008, a taxa de juros real no Brasil foi, sistemática e consideravelmente, superior à prevalecente no conjunto dos países emergentes (incluindo o Brasil). À exceção dos anos de 2001 e 2002, os juros no país foram significativamente maiores que os verificados no grupo dos emergentes. Entre os anos de 1995 e 2008, a taxa de juros média no Brasil foi bastante superior à média da Turquia (Gráfico 3).

Gráfico 5
Taxa Básica de Juros Real (% a.a.) — Brasil, Turquia e Países Emergentes: 1995-2008

Fonte: World Economic Outlook e International Financial Statistics.

 

Após a crise do subprime, marcada pela falência do banco Lehman Brothers (setembro de 2008), inicia-se um processo de reorientação da política econômica — com destaque para a estratégia de combate a inflação —, tratado a seguir.

 

2.2. Política monetária e combate a inflação após a crise do subprime: a flexibilização do tripé (2009-2012)

O tripé de política econômica foi mantido rigidamente no primeiro mandato de Lula (2003-6): as metas de inflação e fiscais eram perseguidas de forma rigorosa[2].

A flutuação cambial — com a ausência de controles de capitais — mantinha o câmbio como principal âncora para a inflação. No segundo governo Lula (2007-2010), começa a haver uma parcimoniosa flexibilização, com o resgate de política fiscal contracíclica e algumas medidas de controle cambial. Inicialmente, o Banco Central do Brasil (BCB), por seu turno, foi na contramão, tornando o RMI ainda mais rígido. Criou-se uma falta de coordenação entre as principais instâncias da política econômica: a fiscal era expansionista, a monetária restritiva. A reação à crise do supbrime foi notória: o Ministério da Fazenda (MF) estimulava a economia, e o BCB subia os juros.

Desde fins de 2010, vem-se desenhando uma mudança na política econômica, notadamente quanto à estratégia de estabilização de preços. A atuação do MF ampliou-se significativamente após a crise do subprime (2008-9). Com uma situação fiscal mais folgada, resultante do aumento da arrecadação devido ao crescimento econômico dos anos anteriores (2004-7), o espaço para medidas anticíclicas aumentou significativamente. O maior ativismo na política fiscal se manteve mesmo após a superação da fase mais aguda da crise.

A partir de 2010, o foco voltou-se para o câmbio. Também foram adotadas medidas para conter determinados preços e para controlar da demanda agregada, em atuação mais coordenada com o BCB. O imposto sobre operações financeiras (IOF) foi o principal instrumento para coibir a apreciação cambial do imediato pós-crise: a regra foi alterada mais de 10 vezes. Destaca-se a taxação em 6% do ingresso de capital estrangeiro no mercado de renda fixa (títulos de dívida), derivativos, fundos e sobre operações de câmbio. De modo geral, visou-se desestimular o ingresso de capitais de curto prazo — reduzindo-se a volatilidade do fluxo de capitais e da taxa de câmbio. A flexibilidade cambial foi limitada por controles à entrada de capitais, evitando-se sobreapreciação mais intensa do Real — que prejudica a competitividade da indústria, setor-chave para o desenvolvimento econômico.

O IOF serviu, também, para desestimular a demanda por crédito de pessoas físicas (elevaram-se as alíquotas), atuando em complemento às medidas de contenção da demanda agregada editadas pelo BCB — com vistas a conter a inflação.

O MF adotou, ainda, medidas para prevenir a elevação de determinados preços. Ressaltam-se as desonerações tributárias e, principalmente, a criação de linha de financiamento para estocagem de etanol (combustível), visando garantir oferta adequada na entressafra — evitando-se importante pressão inflacionária.

As mudanças por parte do BCB ocorreram a partir de dezembro de 2010, quando são editados dois conjuntos de medidas. O primeiro contemplava a elevação dos recolhimentos compulsórios sobre depósitos à vista e a prazo, para reduzir a liquidez bancária e, consequentemente, moderar a oferta de crédito. Buscava-se arrefecer a demanda agregada e, portando, a inflação. Os compulsórios já haviam sido usados, por exemplo, para dar liquidez ao sistema bancário durante a crise financeira de 2008-9. Entretanto, sua utilização como instrumento de PM complementar à Selic no controle da inflação constituiu relevante inovação — principalmente levando-se em conta que, desde a adoção do RMI, o BCB utilizava um único instrumento, a Selic.

O segundo conjunto é formado por medidas de controle de crédito, chamadas de macroprudenciais (no âmbito do acordo de Basiléia). Ampliou-se o requerimento de capital das operações de crédito a pessoa física (pela elevação do fator de risco). Assim, visava-se desestimular a oferta de crédito, controlando-se a demanda agregada e a inflação[3]

Durante o governo Dilma (2011-2), o processo de flexibilização do tripé foi aprofundado. Merece destaque a alteração dos rendimentos da poupança. A regra antiga indevidamente estabelecia uma espécie de piso para os juros — cerca de 6,5% a.a. acrescido dos impostos sobre operações com títulos[4]. O MF eliminou esse piso para a Selic (em torno de 9% a.a.) contribuindo, de forma coordenada com o BCB, para a queda dos juros[5].

Também se ressalta a atuação menos conservadora do BCB na fixação dos juros. O BCB antecipou e, acertadamente, tomou proveito de uma janela de oportunidade para impor redução menos gradual e parcimoniosa da Selic. Dessa forma, o BCB sob o comando de Tombini distanciou-se, ainda que de forma limitada, do padrão excessivamente conservador que vinha caracterizando a instituição. Exemplo notório deste conservadorismo ficou conhecido como o erro de Meirelles. Apesar do recrudescimento da crise do subprime (no final de 2008) e dos claros sinais de desaquecimento da economia, o BCB manteve a PM apertada. Além de favorecer uma queda ainda mais drástica da atividade econômica, perdeu-se boa oportunidade de se reduzir a Selic.

Essa nova postura materializou-se em corte, não previsto pelo mercado financeiro, de 50 pp. na Selic, na reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) de agosto de 2011. Movimento que gerou pesadas perdas para a maioria dos agentes do mercado de Depósito Interfinanceiro (DI), que apostava na manutenção dos juros. O BCB contrariou, frontalmente, o “consenso” de mercado, antecipando em cerca de três meses a redução da Selic implícita no SWAP-DI, verificando-se forte ajuste nas posições no mercado de juros futuros. No dia 1º de agosto (linha preta no Gráfico 6), o Swap-DI de 30 dias convergiu para o que o mercado previa para 120 dias à frente, na data imediatamente anterior à da reunião (linha pontilhada).

 

Gráfico 6
Taxa Referencial de Swaps DI Pré-Fixada (% a.a.) — Brasil: ago./2011

Capitulo3-6

Fonte: BM&F Bovespa. Elaboração do autor.

 

Essa decisão fundamentou-se em quadro inflacionário mais benigno, marcado por: i) ameaça de recrudescimento da crise europeia e consequente manutenção dos juros internacionais em patamares mínimos históricos; ii) arrefecimento da atividade econômica doméstica; e iii) reaproximação da inflação ao centro da meta. Além disso, o MF agiu de forma coordenada com o BCB, elevando a meta de superávit primário.

Com o aprofundamento da crise do Euro, deu-se continuidade ao processo de flexibilização da política monetária (Gráfico 7). Por um lado, deu-se sequência ao movimento de que da Selic, que alcançou o mínimo histórico de 7,25 a.a., em outubro de 2012 (gráfico 7).

 

Gráfico 7
Selic (a.a.) e Inflação (IPCA acumulado) — Brasil:  jan./2009—dez./2012

Capitulo3-7

 

Mas as mudanças foram além da quedada histórica da Selic. Notadamente a partir de fins de 2012, verificou-se importante avanço na estratégia de estabilização de preços: uma mudança tanto no diagnóstico quanto na estratégia de combate a inflação. Passou-se a reconhecer que as pressões conjunturais de demanda são apenas um dos componentes da inflação — e que, portanto, não cabe apenas ao BCB a tarefa de cumprir a meta. Ao mesmo tempo, já se admite a relevância de pressões inflacionárias estruturais advindas do lado oferta — a serem combatidas pelo MF com instrumentos não monetários.

O ataque direto às pressões de custo é inovação sem precedentes na história brasileira contemporânea, notadamente após o Plano Real. A medida mais impactante foi a revisão das tarifas do setor elétrico — anunciada, explicitamente, como uma medida de combate à inflação. No mesmo sentido vão as demais desonerações tributárias, com destaque para a redução da contribuição patronal sobre a folha salarial visando diminuir o custo da mão de obra. Assim, ataca-se a chamada inflação de impostos que, ao onerarem excessivamente a produção, potencializa a alta dos preços.

A desindexação dos ativos financeiros — resíduo anacrônico do período de alta inflação — é outro importante passo dado pelo MF. Por um lado, a parcela da dívida pública indexada à Selic (LFT) foi reduzida expressivamente (para menos de 30%). Concomitantemente, a maturidade média da dívida pública foi elevada. Por outro, o MF estuda medidas para fomentar o mercado privado de capitais, com o objetivo de “desindexar a indústria de fundos do DI e da taxa de câmbio e alongar os prazos dos investimentos” (Valor, 2013). Essas medidas potencializam a política monetária e, portanto, favorecem a queda da Selic sem ameaçar a estabilidade de preços.

Identifica-se importante mudança no tratamento dado ao combate a inflação. Apesar dos variados alarmes, o compromisso com a estabilidade de preços não foi flexibilizado, mas sim, reforçado. Primeiro, por que o BCB está melhor municiado para cumprir a meta de inflação, ao dispor de um conjunto mais amplo de instrumentos — e, portanto, não se fiar exclusivamente na Selic, cuja eficácia no combate à inflação é comprovadamente baixa. Segundo, por que o MF tornou-se aliado do BCB, agindo de forma coordenada com ele, na manutenção da estabilidade. O reconhecimento de que a inflação no Brasil não depende tanto do nível de atividade econômica (ou da demanda) é um avanço. O combate às pressões estruturais de custo e a desindexação dos ativos financeiros facilitam o trabalho do BCB.

Em suma, constata-se um aprimoramento institucional do regime de política econômica. Trata-se de uma reorientação ainda em andamento e que, dada a complexidade dos processos decisórios subjacentes à condução da política econômica em sociedades democráticas, é lenta por natureza.

 

3. Um breve balanço da política monetária sob o regime de metas de inflação: as falhas no mecanismo de transmissão e o elevado sacrifício do combate à inflação

Observa-se a existência de duas fases durante a vigência do RMI. Nos cinco primeiros anos de sua adoção (1999-2003), o BCB teve dificuldades no cumprimento das metas, a despeito das altas taxas de juros. A partir de 2004, as metas foram cumpridas com maior facilidade (Tabela 4).

 

Tabela 4
Metas Para o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) e Valores Observados (taxa de variação acumulada) — Brasil: 1999-2012

Ano

Meta Verificado Cumprimento da meta

 1999

6,0 e 10,0% 8,9%

Sim, com desvio > 0

2000

4,0 e 8,0% 6,0%

Sim

2001

2,0 e 6,0% 7,7%

Não

2002

1,5 e 5,5% 12,5 %

Não

2003

Ajustada para 8,5% 9,3%

Não

2004

3,0 e 8,0% 7,6%

Sim, com desvio > 0

2005

2,0 e 7,0% 5,7

Sim, com desvio > 0

2006

2,5 e 6,5% 3,1%

Sim, com desvio < 0

2007

2,5 e 6,5% 4,5 %

Sim

2008

2,5 e 6,5% 5,9%

Sim, com desvio > 0

2009

2,5 e 6,5% 4,3%

Sim, com desvio < 0

2010

2,5 e 6,5% 5,9%

Sim, com desvio > 0

2011

2,5 e 6,5% 6,5%

Sim, com desvio > 0

2012

2,5 e 6,5% 5,8%

Sim, com desvio > 0

Fonte: BCB.

 

Chama a atenção o fato de que, a apesar de praticar as maiores taxas de juros do mundo, o BCB não tenha sido capaz de cumprir as metas de inflação por três anos seguidos, em 2001-3. Este é um indício de que ainda há problemas na transmissão da PM, anos após a redução do peso do componente inercial da inflação, promovida pelo Plano Real.

De fato, a inflação brasileira tem-se mostrado muito resiliente: ela não desce para níveis abaixo de um determinado patamar (em torno de 4-5% a.a.), a despeito da alta carga de juros imposta pelo BCB. Isso sugere haver algo sui generis no mecanismo de transmissão da PM que faz com que a inflação brasileira não responda — ou permaneça pouco sensível — aos pesados estímulos contracionistas emanados da PM[6].

A propósito, há um amplo conjunto de evidências empíricas de que há falhas na transmissão da PM. Por exemplo, Modenesi e Araújo (2013) mostram que é baixa a sensibilidade do IPCA à taxa de juros. Pela estimação de um modelo de vetores auto-regressivos (VAR), concluem que um aumento da Selic tem reduzido impacto deflacionário. Assim, o BCB — segundo a lógica do RMI — precisaria mantê-la em níveis demasiadamente elevados para que as metas de inflação sejam minimamente cumpridas.

A baixa a sensibilidade da inflação à taxa de juros é o fato estilizado mais marcantes do período. Isso significa que uma elevação da Selic tem reduzido impacto deflacionário. Assim, o ganho de bem-estar — em termos de redução da inflação —, decorrente de uma elevação da taxa de juros, mostra-se pequeno.

Por outro lado, os custos da política de juros altos não são desprezíveis. O efeito de um aumento da Selic sobre o nível de atividade é negativo. Em resposta a um aumento nos juros, a economia se desacelera e o desemprego aumenta. A rigidez monetária é uma das razões — ainda que não a única — para o fraco desempenho da economia brasileira, entre 1995 e 2012[7]. O PIB real cresceu abaixo de 6% em todos esses anos (exceto em 2010, quando superou os 7.5%), tendo ficado acima de 5% em apenas quatro ocasiões, em 2004, 2007, 2008 e 2010. Tal resultado torna-se ainda pior quando comparado com o desempenho dos demais países emergentes que, de forma geral, têm crescido a taxas consideravelmente superiores e de forma sustentável (Gráfico 3).

 

Gráfico 8
Taxa de Crescimento do PIB Real (%) — Brasil e Países Emergentes: 1995-2012

Capitulo3-8
Fonte: World Economic Outlook.

 

É justamente aqui que se encontra a falha no mecanismo de transmissão da política monetária: uma elevação dos juros contrai a demanda agregada. Entretanto, o desaquecimento da economia não se transmite integralmente para os preços. Isto é, o arrefecimento da inflação é desproporcionalmente inferior à queda da atividade econômica. Temos aqui um segundo fato estilizado da economia brasileira no período: a baixa aderência da inflação ao ciclo macroeconômico.

A taxa de câmbio também se reduz em resposta a um aumento na Selic. O elevado diferencial entre a taxa de juros doméstica e a externa contribui para o expressivo processo de valorização do real, verificado a partir de 2003. O real é uma das moedas que mais se valorizaram recentemente: no ano de 2011, a taxa de câmbio média foi inferior ao valor verificado em 1999.

É importante notar que a sobrevalorização do real não é um subproduto indesejável da política de juros alto. Antes pelo contrário, a valorização do real tem sido a essência da estratégia de estabilização. Dito de outra forma, o câmbio tem sido o principal canal de transmissão da política monetária. Trata-se de um terceiro fato estilizado, que marca a economia brasileira desde a adoção do Plano Real. Por exemplo, Araújo e Modenesi (2010) mostram que o câmbio é mais relevante para explicar a dinâmica da inflação do que o nível de atividade econômica.

 

Gráfico 9
Taxa de Câmbio Média — Brasil: 1995-2012

Capitulo3-9
Fonte: BCB.

 

 

Finalmente, a evolução das contas públicas tem sido fortemente influenciada pela política monetária. É inequívoco o impacto negativo da política monetária: a despeito da obtenção de superávits primários robustos, da ordem de 4,0% do PIB, em média, registraram-se déficits nominais entre 1,5% e 5,8% do PIB, entre os anos de 1999 e 2012 (Quadro 1). Ou seja, a despesa com o pagamento de juros da dívida foi, sistemática e consideravelmente, superior aos superávits apurados nas contas primárias do setor público. Nesse sentido, tem ocorrido uma dominância monetária: a política monetária tem impactado fortemente (e de maneira negativa) as contas públicas.

A dominância monetária é exacerbada por uma peculiaridade da dívida pública brasileira, a existência de títulos indexados à taxa básica de juros. As Letras Financeiras do Tesouro Nacional (LFT) são títulos pós-fixados que evoluem de acordo com a Selic. Como as LFT constituem parcela relevante do estoque da dívida mobiliária federal interna, a manutenção da Selic em níveis elevados resulta em custo financeiro igualmente alto: o pagamento de juros da dívida pública foi, em média, superior a 6,5% do PIB, no período de 1995 a 2012, tendo alcançado 9,4%, em 2003 (Quadro 1).

 

Quadro 1
Indicadores Selecionados das Contas Públicas (% do PIB) — Brasil: 1995-2012

Ano DLSP Superávit Primário  Despesa de Juros Déficit Nominal
1995 28,0 -0,3 6,8 6,5
1996 30,7 0,1 5,7 5,8
1997 31,8 0,9 5,0 5,9
1998 38,9 0,0 7,5 7,5
1999 44,5 3,3 9,1 5,8
2000 45,5 3,5 7,1 3,6
2001 48,4 3,7 7,2 3,5
2002 50,5 4,0 8,3 4,3
2003 52,4 4,3 9,4 5,1
2004 47,0 4,2 6,6 2,4
2005 46,5 4,4 7,3 3,0
2006 44,7 3,9 6,9 3,0
2007 42,7 4,0 6,2 2,2
2008 36,0 4,1 5,6 1,5
2009 42,1 2,0 5,4 3,3
2010 39,1 2,7 5,3 2,5
2011 36,4 3,1 5,7 2,6
2012 35,2 2,4 4,9 2,5
 Fonte: BCB.

 

Resumindo, por um lado, a inflação tem-se mostrado pouco sensível à Selic. Por outro, o custo de uma redução da inflação — dado pela retração da atividade econômica, valorização cambial e piora nas contas públicas — tem sido alto.

 

4. Considerações finais

Foram destacados três fatos estilizados que marcam a política monetária e a estratégia de estabilização de preços após o Plano Real:

  1. Baixa sensibilidade da inflação à taxa Selic;
  2. Baixa aderência da inflação ao ciclo econômico; e
  3. A relevância da taxa de câmbio no mecanismo de transmissão da política monetária.

Ainda que analiticamente distintos esses fatos se inter-relacionam e corroboram a tese de existência de falhas no mecanismo de transmissão da política monetária. Os problemas no mecanismo de transmissão, por sua vez, ampliam o sacrifício imposto pela estratégia de combate a inflação — com base no RMI — à sociedade brasileira.

Por um lado, uma elevação da Selic gera um ganho de bem-estar relativamente pequeno: um aumento da taxa de juros tem impacto pouco expressivo sobre a inflação. Por outro, uma ampliação da Selic reduz o nível de bem-estar social, notadamente ao implicar em redução do nível de atividade econômica — com correspondente aumento no desemprego — e deterioração das contas públicas. Além disso, uma elevação da Selic tende a valorizar o real que, ao prejudicar a competitividade do setor produtivo doméstico, desestimula as exportações, tendendo a deteriorar as contas externas e a comprometer, ainda mais, a atividade econômica. Em suma, a experiência recente indica que o balanço entre custos e benefícios da estratégia de estabilização baseada no RMI é desfavorável.

A evidência empírica reforça a crítica teórica de Keynes e Pós Keynesianos (Davidson, 1978; 2003) ao uso da taxa de juros como principal instrumento de combate a inflação, em linha com o RMI[8]. Assim, se preconiza uma mudança na estratégia de estabilização: ela não deve se centrar no gerenciamento da demanda agregada — por meio de apenas um instrumento, a Selic. As pressões de custos também devem ser combatidas por instrumentos específicos: políticas de renda (para os ganhos do trabalho e do capital); estoques reguladores de produtos estratégicos etc. Em suma, a política de estabilização de preços deve ser multidimensional, fundamentada em medidas não monetárias — eventualmente complementada por instrumentos monetários, dependendo da natureza inflação. Não há regra de bolso.

 

Referências

ARAÚJO, E. e MODENESI, A. M. (2010a). “A Importância do Setor Externo na Evolução do IPCA (1999-2010): uma análise com base em um modelo SVAR”. XXVIII Encontro Nacional de Economia.

DAVIDSON, P. (1978). Money and the Real World. London: Macmillan.

DAVIDSON, P.  (2003). Post Keynesian Macroeconomic Theory. Cheltenham: Edward Elgar.

MODENESI, A. M. (2005). Regimes Monetários: Teoria e a Experiência do Real. Barueri: Manole.

MODENESI, A. M. e MODENESI, R. L. (2012). “Quinze Anos de Rigidez Monetária no Brasil: uma agenda de pesquisa.” Revista de Economia Política, 32, no. 3: 389-411.

MODENESI, A. M. e ARAÚJO, E. (2013). “Price Stability under Inflation Targeting in Brazil: an empirical analysis of the monetary policy transmission mechanism based on a VAR model (2000-2008)”. Investigación Económica, v. LXXII, p.99-133.

VALOR ECONÔMICO, (2013). “Fazenda estuda novos incentivos à dívida privada”, 4, setembro, P. C-14.


  1. Modenesi e Modenesi (2012) destacam cinco teses para o “problema da taxa de juros no Brasil”: reduzida eficácia da política monetária; convenção pró-conservadorismo na política monetária; equilíbrios múltiplos da taxa de juros; fiscalista; e incerteza jurisdicional.
  2. Ainda que as metas não tenham sido cumpridas por três anos seguidos. O que importa salientar é o conservadorismo do BCB, substanciado em uma política monetária excessivamente rígida.
  3. Um segundo objetivo seria a moderação do endividamento das famílias.
  4. Com a Selic abaixo desse patamar, o rendimento da maioria dos fundos DI torna-se inferior ao da poupança. Assim, teme-se uma fuga em massa para a poupança, comprometendo-se a venda de títulos públicos e, portanto, o financiamento do Tesouro Nacional.
  5. Note-se que a nova regra prevê a indesejável indexação dos rendimentos da poupança à Selic, contrariando a imperiosa desvinculação dos ativos financeiros da taxa básica de juros.
  6. Entre as principais características empírico-institucionais da economia brasileira a comprometer a transmissão da política monetária, destacam-se são: i) a inexistência de uma curva de rendimentos para prazos de maturação suficientemente longos; ii) o problema das LFT; iii) a existência de um canal de custos perverso (i.e. que atua no sentido contrário do esperado); e iv) elevada participação dos preços administrados no IPCA (Modenesi e Modenesi (2012).
  7. Ainda que não se ignore o fato de que o Brasil apresenta reduzidas taxas de crescimento desde os anos 1980, não se pode negar que a política monetária tem, ao menos, constituído relevante entrave à reversão dessa situação.
  8. Mais detalhes em Modenesi (2005: cap. 6).

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